A urgência da centralidade da ERER na educação básica

mulher negra de cabelos crespos presos, de óculos, sorrindo.

Joana Oscar

Professora da Rede Pública Municipal da Cidade do Rio de Janeiro. Graduada em Letras pela UFRJ.

Especialista em Educação das Relações Étnico-Raciais – CEFET/RJ. 

Mestre em Educação – UFRJ.

Doutoranda em Educação na UFRJ.  Líder Carioca pela Fundação João Goulart – FJG. Líder Ubuntu – Vetor Brasil/Gesto. Membro suplente do Conselho Municipal de Educação.  Co-fundadora do Coletivo Docente Agbalá. Co-idealizadora do Curso Livre Onã Infâncias e Relações Étnico-Raciais.  Há 3 anos Curadora da Lista dos 30 melhores livros infanto-juvenis da Revista Crescer. Em 2021 – atuo na criação  e gerenciamento da GERER – Gerência de Relações Étnico-Raciais, primeiro setor institucional comprometido com a política de equidade racial no âmbito da Secretaria Municipal de Educação. Em seguida, fui promovida à Coordenadora da área (2022 – 2023),  agregando as gerências de Projetos Pedagógicos Extracurriculares e  Gerência de Educação Integral, ampliando e transversalizando a atuação da Educação das Relações Étnico-Raciais. Retorno para GERER em 2024, para consolidação da pauta.

A urgência da centralidade da ERER na educação básica: olhos de ver e intencionalidade política

O que você verá neste artigo:

Provocada a pensar sobre o cenário das discussões sobre as relações étnico-raciais no campo educacional atual me parece óbvia a percepção de que as políticas públicas feitas de forma universalista não estão alcançando a todos os estudantes. E, inclusive, têm contribuído para  a conjuntura de desigualdade na aprendizagem, o que se torna evidente quando acrescentamos os critérios raça/cor, gênero, nível socioeconômico, território, dentre outras subjetividades aos indicadores.

O que vemos, no âmbito das práticas das secretarias de educação públicas, é uma tentativa intencional em superar essa desigualdade, com a criação de programas que promovam a busca ativa para combate a evasão e apresentam estratégias para reforço, recomposição e aceleração de aprendizagem.

Ainda que os avanços sejam válidos, o que é ponto pacífico, essas desigualdades persistem, não pela falta de dados que permitam compreender quem são esses estudantes e quais as necessidades que possuem, mas porque ainda se reluta em compreender que o caminho não é só produzir o recorte, mas trazer a  educação das relações étnico-raciais para a centralidade.

Sim, porque se já somos capazes de identificar com dados e evidências que os que menos aprendem são alunos pretos, pardos e indígenas, as estratégias, ainda bem intencionadas, ao deixarem o aspecto da equidade racial à margem levarão ainda muito mais tempo para se tornarem chave de mudança efetiva. A urgência, no meu ponto de vista, é definirmos equidade racial como uma política que se traduza estrutural, institucional e pedagogicamente.

Desde 2021, vimos na Secretaria Municipal de Educação da Cidade do Rio de Janeiro imbuídos dessa construção com a criação da Gerência de Relações Étnico-Raciais – a GERER.

Não, não inventamos a roda e nem poderíamos ter essa pretensão, mas como estudiosa e pesquisadora das questões raciais, professora da rede e técnica responsável por esse trabalho, me coloquei na condição de aprendiz, reconhecendo as iniciativas anteriores, mapeando as práticas pedagógicas dos pares nas escolas, construindo referências a partir dos desenhos de outras redes de ensino e, sobretudo, incorporando os mecanismos legais:

  • a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional Nº 9.394/96, modificada pelas Leis nº 10.639/03 e nº 11.645/08 que instituíram a obrigatoriedade do ensino das histórias e culturas africanas, afro-brasileira e indígena no currículo da educação básica;
  • as Diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e o Plano de implementação da Lei 10.639/03.

Sempre digo que esses documentos, assim como a canção, já nos deram “régua e compasso”, e que depende muito mais de vontade política para que se concretizem do que da falta de referenciais.

E foram justamente as iniciativas institucionais anteriores que foram nosso diferencial, porque se apresentaram como laboratório dos desafios e das possibilidades para a construção da gerência. E desde lá vimos perseguindo três grandes desafios: o que é a política de ERER na educação básica, como fazer chegar em todas as unidades, para todos os profissionais e, principalmente, para todos os alunos; e como garantir a continuidade.

Vou começar a responder de trás para frente. Sobre a continuidade, em perspectiva teórico- metodológica,  é imperioso percebermos a força dos sujeitos ao longo dos anos para que estejamos evoluindo como sociedade. São essas pessoas, pretas e indígenas, organizadas coletivamente ou indivíduos em movimento, que vem pautando todos os espaços da sociedade. Em especial, por espelho e admiração, menciono a Professora Dra. Petronilha Beatriz. Gonçalves e Silva, mulher negra, professora, ativista, indicada pelo Movimento Negro como Conselheira da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação.

Nesta condição foi relatora do Parecer CNE/CP 3/ 2004 que estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais (ERER) e para o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.

Aqui, somos convocados a historicizar e humanizar, compreendendo a conjuntura social e política da Lei se constituiu como marco fundamental e, obviamente, perceber que o avanço na educação foi estratégico para reverberar em todas as áreas da sociedade.

A Professora Petronilha Beatriz, portanto, foi a liderança certa, no momento certo, com a conjuntura favorável. Dessa forma, independente do lugar em que estejamos como agentes públicos, devemos estar preparados para quando formos os agentes certos, na hora e conjuntura certa. Por conta dessa construção que, 21 anos depois,  temos outra tensão sobre a continuidade, muito mais objetiva e até diretiva: não mais sobre o que vai ser feito, mas como e quais instrumentos necessários para garantia dessa efetivação. Em especial, digo efetivação, porque do meu ponto de vista já implementamos a Lei.

Me  incomoda a narrativa de que ela ainda não foi implementada, porque se compreendermos que estamos num campo de disputas de narrativa entre forças de mudança e forças conservadoras, por que deveríamos entregar a nossa narrativa ao outro (novamente)?  Particularmente, é contraditório, ao passo que levamos muito tempo para assumirmos esse lugar no debate. Ah, mas podemos sim fazer uma série de questionamentos e inferências sobre os rumos da política em andamento? Tácito e necessário, mas não podemos mais dar o benefício da dúvida sobre esse importante  instrumento legal, reconhecendo-o como divisor de águas.

Ademais, aproveito de experiência pessoal para comprovar a força da Lei, porque sou resultado dela! Sou uma ex-aluna da rede pública que não teve um currículo que potencializasse as histórias, memórias, culturas e protagonismos nos meus ancestrais e, consequentemente, não pude me reconhecer como uma criança negra em processo de autoestima, de sonhos e de potencialidades de realizar meu percurso com sucesso sendo exatamente como era.

Dessa invisibilidade, que como dizia outra mulher, preta e professora Azoilda Loretto da Trindade; é morte em vida, caminhei invisível até me deparar com a Lei 10.639/03, na pós-graduação em relações étnico-raciais. O resto dessa história é longo, mas a flecha foi certeira: tanto sei quem sou, do que sou capaz, o que quero realizar, quanto tenho convicção de onde vim e por isso consigo projetar para onde quero ir, porque hoje existo.

Adoraria falar romanticamente sobre isso, existir sendo quem sou na nossa sociedade ainda não é o prisma desejado, mas é uma realidade plausível, é panorama de mudança, porque, novamente, me percebo sendo parte e continuidade, para honrar as lutas ainda mais duras dos que vieram antes e seguir lutando para que seja ainda melhor para os que vem logo atrás. Eu fui a ex-aluna que não existiu, mas hoje sou a professora que tem pares, a gestora pública que representa a tomada de decisão da gestão e tem as condições para oportunizar esse repertório de existência para cerca de 670 mil alunos da nossa Rede.

E aí se apresenta o segundo desafio:

Como fazer chegar?

Sem dúvidas, aprendemos no percurso a necessidade de despersonalizar a pauta da ERER. Sim, até aqui chegamos com os profissionais da educação que tem suas duplas identidades como ativistas e pesquisadores, pautando em seus espaços e contribuindo para a ampliação do debate. Contudo, no âmbito da instituição, restringir a esses profissionais é uma fragilidade, porque basta deslocarmos as pessoas de setor, de pasta de trabalho, de órgão, para vermos, mais uma vez, o enfraquecimento das ações.

Por isso, a importância da criação do órgão que, em teve total respaldo para a representatividade desses atores, mas que também delimitou um ponto na estrutura organizacional, incidindo para que todas as áreas da secretaria entreguem, dentro das suas especificidades, o indicador de equidade étnico-racial.

Seguindo os passos de outras redes mais amadurecidas, a principal estratégia foi a inserção dos conteúdos de histórias e culturas africanas, afro-brasileiras e indígenas nos materiais  pedagógicos, além de um intencional direcionamento de todo repertório do material para privilegiar  a riqueza das múltiplas identidades que retratam o sentido de ser carioca!

Mas do que um material pedagógico com objetivo genuíno do desenvolvimento de habilidades e competências dos alunos nas variadas áreas de conhecimento, orgulhosamente podemos dizer que o material Rioeduca é um recurso poderoso de pertencimento à cidade, trazendo suas pessoas, seus bairros, suas curiosidades, da Ilha de  Paquetá à Santa Cruz. Com essa estratégia chegamos a todas as unidades, todos os estudantes e, consequentemente a todas as famílias e comunidades escolares.

Outro fator diferencial se refere ao que cumprimos como resolução das diretrizes e do plano de implementação, pois esse material entrega dupla medida: repertório positivo para construção de identidades negras e indígenas dos estudantes, bem como repertório de reeducação do imaginário social de exclusão previamente construído e cristalizado nos cursos de formação de professores.

O conteúdo, dessa forma, também incide sobre uma revisão para os educadores, oportunizando processo de reflexão, atualização e ampliação de referenciais sobre a educação das relações raciais.

Para continuarmos pensando: o que é a política de ERER na educação básica?

Para essa resposta precisamos trazer alguns atores para cena: os movimentos negros e indígenas, a sociedade civil organizada, a academia, o governo federal e as instituições púbicas de ensino.

No primeiro ano da GERER, houve grande debate sobre o que seria, um desalinho de expectativas entre esses atores, além dos desafios da própria estrutura organizacional que, naturalmente, reproduz entraves dadas as especificadas de se criar uma pasta. A minha expectativa, desta vez ingênua, era que todos os atores que têm a pauta da ERER como ativo se uniriam nessa empreitada, mas a professora saída do chão da escola não contava com a arena política, na qual se esgarçam relações de poder, de tomada de decisão, de avanços e retrocessos.

Depois das pancadas simbólicas e constrangimentos pedagógicos, fica a aprendizagem: não há consenso. Desesperador por um lado, libertador por outro, pois se não há consenso, é porque somos nós que estamos com lápis na mão para escrever essa história. E, justamente, porque não há consenso que percebo que estamos em looping alimentando dualismos, que humildemente categorizo como a mão invisível do sistema que ainda não é antirracista.

Academicamente, um paradoxo, já que nesse campo, os atores já caminharam em compreender que não se quebram padrões hegemônicos com narrativas únicas. Inclusive por lá, as pesquisas trazem cosmovisões que vão desconstruindo essa linha de raciocínio e tempo linear, questionando os locais de construção de  saberes científicos em alargamento às narrativas de notório saber e dos sujeitos falando por si mesmos. 

Os movimentos negros e indígenas, por sua vez, seguem na ponta da lança,  nas trincheiras da resistência, demarcando a garantia de direitos, ainda vulneráveis, sobretudo com o recrudescimento de um conservadorismo extremo na defesa de um padrão de privilégios sociais a determinados grupos em detrimento da assunção de parcela de responsabilidade na produção, reprodução e manutenção de desigualdades sociais que secularmente assolam a maior parte da população.

A sociedade civil, organizada, em articulação com os movimentos sociais trouxe um importante contributo: as pesquisas sobre a implementação da ERER nas redes de ensino. Além dos dados e indicadores, construídos ao longo desses 21 anos; agregaram as metodologias ativas para leitura, interpretação, autoavaliação e recomendações por parte das redes.

Esse panorama nacional, traduzidos nas pesquisas do Instituto Unibanco, do Geledés e Instituto Alana, do SETA e Instituto Peregum, Todos pela Educação e Mahin Consultoria, por exemplo, constituíram a possibilidade de ter um parâmetro em ERER como ponto de partida, para quem ainda não começou; e ponto de autoavaliação, para as redes que já tem um percurso em andamento.

Nesse contexto, em 2023, no 3º ano de existência da GERER, pudemos avaliar que a política em ERER na SME já é uma política pública implementada com sucesso.

Se lá em 2021, baseados nas experiências anteriores, pairava uma certa insegurança sobre a natureza do órgão e as tomadas de decisão para se constituir a área, pudemos confirmar que fizemos a escolha certa. A escolha que reconhece a própria história e sujeitos públicos, que amadureceu as iniciativas anteriores, que construiu plano de ação e se definiu como órgão consultivo, mediador e de planejamento estratégico, não porque não tenha um caráter intrínseco executivo, mas porque compreendeu-se a urgência de que toda a secretaria pautasse a ERER e não só a pasta específica.

Despersonalizar, mas sem deixar de reconhecer a trajetória de todos os sujeitos envolvidos, conferindo-lhes lugar de fala, de escuta e de afeto por si só já é um exemplo de como as instituições públicas em geral também estão em panorama de mudança.

Sim, “eu vejo a vida melhor no futuro”, sou otimista inveterada, o que não me impede de reconhecer que ainda falta diálogo entre os atores aqui mencionados, para que a gente rompa o looping e seja capaz de encontrar pontos de convergência e negociação que permitam mais avanços, sendo o primeiro deles a pactuação da centralidade da equidade racial. 

E é justamente por isso que, a despeito de todos esses atores e cenários, finalizo resistindo em comemorar cada passo. O mais recente deles foi responder ao questionário diagnóstico da aplicação da Lei nº 10.639/03, alterada pela Lei nº 11.645/08,  do Ministério da Educação, parte do Plano de Ações Articuladas (PAR), enviado para as redes através do Sistema Integrado de Monitoramento, Execução e Controle -SIMEC, para todas as redes de ensino.

Foi quase incontrolável conter as lágrimas, afinal, existimos!

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