Por Fábio Fabato
Fábio Fabato é jornalista, escritor e pesquisador de cultura popular. Trabalha há 15 anos na Área de Comunicação da Finep, maior agência de fomento federal a projetos científicos e inovadores estratégicos do Brasil. Possui cinco livros publicados (dentre eles, “Pra tudo começar na quinta-feira – o enredo dos enredos”, que ganhou prêmio da prefeitura do Rio ligado aos 450 anos da cidade) e já comentou a folia do Rio de Janeiro em televisão e rádio. Além disso, também atuou como enredista ou no argumento de diferentes desfiles de carnaval, como o que homenageou a cantora Elza Soares (Mocidade Independente 2020).
Carnaval, ciência e sala de aula
O desfile das escolas de samba é uma forma impressionantemente brasileira de narrar.
Auto embebido nas fuzarcas de Momo, mas também em profunda análise social, comportamental – e até filosófica – de uma gente e um lugar forjados em paraíso, guerra, escravização, cultura popular, entrecruzamentos infindos, desvarios, verdades, bazófias, controvérsias e um bocado de utopias.
Os grêmios nasceram, fundamentalmente, em áreas periféricas e se permitiram relações de troca em meio ao voo em cego dos segredos de existir. Não à toa o porquê de perdurarem, a despeito de titubeios aqui e acolá, de era em era.
Mas são as funções de expressão e esponja do entorno que mantiveram este troço todo de pé, e a partir de saberes que, no começo do século XX, sentiam severa perseguição por parte de uma sociedade inda com ares escravocratas.
Ou seja, contra toda forma de repressão dos aparelhos estatais, as escolas viraram mecanismo de expressão único e vigoroso desse mesmo Estado.
Eis o esplendor d’uma idiossincrasia com plumas e paetês que só revela a musculatura inacreditável de tais instituições coletivas.
O enredo de carnaval, por exemplo, nasce de uma ansiedade.
Da observação emocionada sobre/pelos organismos vivos e pulsantes, as escolas de samba, que são os tais verdadeiros monumentos forjados em luta. E cada uma dessas células espalhadas pela cidade e estado apresenta identidade própria e singular capacidade de refletir as externalidades, contextos, decodificando saberes complexos e até complementando a rotina em sala de aula.
Trabalho como assessor de comunicação em uma agência de fomento que financia ciência, tecnologia e inovação. Por intermédio de um projeto em que misturo estes temas com cultura, pensei no bom e velho carnaval de guerra e me toquei de um fato curioso.
Temáticas científicas no campo tecnológico não parecem lá muito próximas da folia carioca, mas três dos maiores gênios da festa – Rosa Magalhães, Renato Lage e Joãosinho Trinta – foram beber justamente nelas para papar títulos nos anos 90.
Em 1995, Rosinha foi mirar a expedição científica que buscava adaptar camelos ao sertão cearense, empreitada de que participou até mesmo o poeta Gonçalves Dias, para tentar o bicampeonato da Imperatriz Leopoldinense. Conseguiu.
A experiência de adaptação biológica dos bichos foi um desastre e, depois do relato de tal desventura ocorrida à época do Segundo Reinado, a escola de Ramos terminava seu desfile coroando o jegue brasileiro – mais resistente que o animal importado do lado de lá do Atlântico.
Já no ano seguinte, a Mocidade faturou inesquecível caneco apostando numa ode à sanha inventiva do bicho-homem desde que foi colocado no mundo por Deus, parte do enredo “Criador e Criatura”, do mago Lage. A epopeia mezzo criacionista mudava de figura tão logo o homem se entendia também como criador.
Aí a temática enveredava pela lógica científica pra lá de hardcore, até mesmo sugerindo que o temido apocalipse poderia ser protagonizado, dada a sua inteligência para o bem e o mal, pelo próprio homem. Sorte que, de acordo com a narrativa, o fim dos tempos fica para depois e a mão que faz a bomba optou por fazer samba com mais força.
A trinca foi fechada em 1997 por Joãosinho Trinta e Unidos do Viradouro, campeoníssimos na carona de um enredo que se assumiu ciência pura desde o começo: o Big Bang, a explosão no Universo que deu origem à Terra.
Aberta por uma inesquecível alegoria negra que representava “O Nada”, a apresentação é modelar ao traduzir de forma lúdica conhecimentos tão profundos a um público certamente de muitos leigos – parte da característica de naturalização de mensagens complexas inerente à cultura popular.
Os três sambas e propostas denotam a beleza que é misturar ciência e aprendizado via uma festa identitária, temas que a educação básica brasileira ainda pode fazer enamorar de modo mais profundo. Fernando Pinto já propusera algo assim, na citada Mocidade, em 1985, no carnaval espacial que chamou “Ziriguidum 2001”. Até mesmo Paulo Barros flertou bastante com temas científicos. Quem não se lembra do carro do DNA, em 2004?
Fato é que vale pra caramba trançar o carnaval com sala de aula para que se abra o horizonte da interdisciplinaridade e a aproximação, por exemplo, de conhecimentos científicos complexos à nossa meninada de olhinhos brilhantes.
Fica aqui um apontamento para prefeituras, estados, educadores – mesmo que certos desafios ainda se imponham e precisem de coragem para a vitória geral da sociedade. Eis o ritmo certo. Axé.
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