A grade da janela: Segurança ou ilusão?

Homem branco, na faixa dos 60 anos.

Por Aydano André Motta

Niteroiense, Aydano André Motta é jornalista desde 1986. Especializou-se na cobertura de Cidade, em veículos como “Jornal do Brasil”, “O Dia”, “O Globo”, “Veja” e “Istoé”. Comentarista do canal SporTV. Conquistou o Prêmio Esso de Melhor Contribuição à Imprensa em 2012. Pesquisador de carnaval e cultura popular, é autor de “Maravilhosa e soberana – Histórias da Beija-Flor”, “Onze mulheres incríveis do carnaval carioca”, da coleção Cadernos de Samba (Verso Brasil), “Da minha porta vejo o mundo”, “Guardiões da alma carioca” e “Que lugar bacana”, entre outros livros. Cobre os desfiles ininterruptamente desde 1988. Autor de roteiros de programas como “Samba coração” (Band, 2023) e do documentário de longa-metragem “Mulatas! Um tufão nos quadris” (2011). Foi consultor da série “Vale o escrito” (Globoplay, 2023).

A grade da janela: Segurança ou ilusão?

O Brasil se explica pelas grades que embrulham casas, lojas, corpos, cabeças, almas. Inventou-se aqui uma sociedade de isolamento e individualismo. Somos, como povo, viciados em acumular, excluir, implodir caminhos, dinamitar acessos, matar esperanças, inviabilizar saídas. Todo um aparato legal se estrutura para proteger o patrimônio, desprezar a vida, limitar oportunidades, inviabilizar a mobilidade. Grades, materiais e metafóricas.

E dá no quê? Em morte e insegurança.

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública funciona como soco na cara anual para desnudar tão devastadora realidade, ao decifrar em números o resultado das escolhas nacionais. A 18ª edição, referente a 2023, contabilizou 46.328 mortes violentas intencionais – menor número em uma década, e ainda assim montanha de cadáveres do tamanho da população de Campos do Jordão (SP) ou de Casimiro de Abreu (RJ).

A queda de 3,4% na mortalidade em relação ao ano anterior não elimina o planetário vexame de o Brasil ser o país sobre a Terra com mais homicídios em números absolutos (na proporção da população, fica em 18º). Supera a Índia com seus 1,428 bilhão de habitantes, e a China dos 1,425 bilhão de bípedes. Os brasileiros são 3% da população mundial, mas aqui acontecem 10,1% dos assassinatos registrados em 119 países.

As mortes são apenas a faceta mais terrível do absurdo conjunto de barbaridades cotidianas da sociedade brasileira, aferido no levantamento. Estupros, agressões, LGBTfobia, transfobia, cardápio caudaloso de violência totalmente naturalizado. 

A reação? Grades.

Sedimentou-se por aqui a crença de que barreiras físicas e humanas conseguirão estancar a sangria. Carros blindados, câmeras, correntes, cadeados, guaritas, catracas, seguranças, sentinelas e milícias. Dobram, triplicam, quadruplicam a aposta, apesar de todas as evidências gritarem que trancas jamais serão panaceias para o problema.

Há décadas, a sociedade brasileira insiste em se auto fissurar. Sonha com o controle de uma parte da população – os pretos, os pobres, os periféricos, os vulneráveis – para que a outra – os ricos, os brancos, a elite – desfrute dos privilégios.

Inventam leis, forjam estruturas, criam narrativas, mas jamais funcionará. Segurança ou tem para todo mundo, ou não tem para ninguém.

Presos a ideias e formatos retrógrados, progressistas e conservadores fracassam de maneira retumbante no tema.

Em valores absolutos, a polícia mais assassina do Brasil (1.701 cadáveres, 26% do total nacional) é a da Bahia – onde governa o PT há 17 anos, ou cinco mandatos consecutivos; a segunda (869) opera no Rio de Janeiro, recanto ensolarado que enfileira mandatários conservadores (e surrealistas). Conectando as mortes ao tamanho da população, o Amapá dispara na frente, com 25,3 óbitos a cada 100 mil habitantes.

O Estado serve de exemplo perfeito para a trágica igualdade entre os lados da polarização: desde 2002, reveza governadores de todos os matizes ideológicos. Tem PT, PDT, PP, PSB e Solidariedade abraçados à derrota invariável.

Na outra ponta, o das mortes de policiais, ninguém supera o Rio de Janeiro. Ano passado, foram 51; Pará, o segundo colocado, teve 29, pouco mais da metade.

A cada quatro anos, na eleição, o debate congela no mesmo lugar: a disputa sobre quem vai dar mais tiro e botar mais grades contra os monstros, os alienígenas, os inimigos.

Prospera a inútil indústria da segurança privada, multiplicam-se políticos na gritaria do “bandido bom é bandido morto” (com o precioso auxílio da mídia e os programas que espetacularizam o banho de sangue) e o Brasil jaz no atraso.

Além de matar em quantidades industriais, o país prende muito – e errado.

Vez ou outra, a sociedade se surpreende com rebeliões e fugas, porque tenta ignorar outra catástrofe: o sistema prisional, definido por todos os lados como depósito de gente que não presta, merecedora de ficar lá para sempre.

Como tal possibilidade inexiste, sem ressocialização, nada faz sentido. A aposta – terrivelmente popular – no encarceramento leva a outro beco de saída. Além de não resolver, agrava os problemas mais óbvios, por servir como poderoso alimentador da violência “aqui fora”.

E só piora com o fato de que o país tem a terceira maior população carcerária do planeta – perto de 850 mil bípedes –, atrás apenas do empate técnico de Estados Unidos (1,7 milhão) e China (1,69 milhão). E contando.

Previsivelmente, não cabe todo mundo nas celas disponíveis, excesso que supera 180 mil pessoas – mais de três vezes o total de presos na Alemanha (56 mil). Mas o Brasil (independentemente da ideologia do governo) insiste no encarceramento.

Constrói novas cadeias porque prende mais, numa ciranda infinita. No bojo, atravanca a Justiça, abandonando os detentos à sua própria sorte.

Só vai prestar para os fabricantes das grades em seus variados formatos. Olhe da sua janela, você aí, e tenha certeza: é só peça decorativa.

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