Traduzindo evidências para políticas públicas

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Por Luísa Costa

Luisa é uma especialista em políticas públicas apaixonada por ciência de dados e desenvolvimento humano. É graduada em Administração Pública e especialista em Estatística pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Hoje, ela é mestranda em Avaliação de políticas públicas na Universidade de Oxford, onde também é bolsista integral da Weidenfeld-Hoffman Scholarship, que reúne líderes transformadores de países em desenvolvimento.

Traduzindo evidências para políticas públicas

A formulação de políticas baseadas em evidências (Evidence-based policymaking ou EBP) assumiu um lugar importante no debate sobre políticas públicas e, apesar das suas controvérsias, provou ser uma parte essencial das intervenções sociais. Este artigo tem como objetivo discutir se o uso de evidências beneficia ou não a efetividade das políticas públicas. As conclusões apoiam que a investigação científica melhora, de fato, a capacidade dos tomadores de decisão ao elaborar soluções para os desafios sociais ao longo dos anos. Desde a economia do orçamento governamental até à redução dos riscos de uma intervenção, os benefícios dos programas baseados em evidências têm o potencial de transformar a elaboração de políticas, especialmente em países menos desenvolvidos com exigências populares antigas e não resolvidas. 

Os benefícios da formulação de políticas baseadas em evidências (EBP)

Aplicar evidências a uma decisão ou ação significa utilizar a investigação e o conhecimento científico para procurar melhores resultados. Como indica Parkhurst (2017), permite-nos saber se um objetivo está a ser alcançado e, caso contrário, descobrir novas estratégias capazes de alterar os resultados presentes. Esse conceito é vital para a elaboração de políticas, uma vez que os governos têm recursos limitados para implementar os seus programas e o custo de cometer erros nas políticas públicas pode ser, em última análise, a vida das pessoas.

Um exemplo bem sucedido da aplicação de evidência para o desenho de políticas é o do Governo da Tanzânia, que utilizou pesquisas domiciliares para orientar as reformas dos serviços de saúde, conforme exposto por Sutcliffe e Court (2005). Ao coletar os dados da população, os servidores públicos puderam compreender melhor suas necessidades e demandas, podendo formular intervenções mais adequadas no sistema nacional de saúde. Como resultado, estas medidas contribuíram para reduzir em 40% a taxa de mortalidade infantil em dois distritos piloto entre os anos de 2000 e 2003.

Este exemplo ilustra a importância do desenvolvimento de competência científica no setor público, o que também foi reforçado por Cairney e Oliver ( 2017). Quanto mais os governos estiverem equipados com capacidades científicas e analíticas, melhor se tornarão na absorção e aplicação de evidências para aumentar a eficácia das políticas.

O caso da cidade do Rio de Janeiro (Biderman et al 2021), no Brasil, também é um exemplo notável de melhoria da eficiência em programas do setor público. Com uma equipe de especialistas e pesquisadores da área da saúde, a Prefeitura desenvolveu um sistema de monitoramento para rastrear as áreas com incidência de doenças tropicais, como a “Dengue”, responsável por infectar milhares de pessoas todos os anos no país. Munidos de dados epidemiológicos, os formuladores de políticas municipais poderiam focalizar as ações de prevenção, priorizando áreas com maior ocorrência da doença. Com isso, em um ano, a cidade reduziu em 98% os casos de Dengue, tendo um número de notificações da doença 73x menor que outras cidades da mesma latitude. 

É possível dizer que o uso de evidências foi vital para mudar o rumo das ações de prevenção da Dengue no Rio de Janeiro e os resultados obtidos não poderiam ter sido alcançados sem dados e conhecimento científico.

Embora importantes, as evidências não são o único componente de políticas públicas bem-sucedidas. No caso da Prefeitura do Rio de Janeiro, outros fatores foram importantes para a efetividade das ações de saúde, como o engajamento de diferentes departamentos do governo local e a disponibilidade de um banco de dados confiável e integrado com informações demográficas. Isto exemplifica que sem condições e recursos adequados, a investigação científica não pode por si só melhorar os programas governamentais. Portanto, os benefícios do uso de evidências podem ser afetados por falhas operacionais na concepção e implementação de políticas públicas.

O uso de evidências requer um método

Como se pode verificar, a mera utilização de evidências não é suficiente para melhorar a intervenção. Para que seja eficaz, a aplicação de provas à elaboração de políticas requer um método. Um aspecto importante a ser considerado é que um artigo científico não deve ser analisado isoladamente, mas, como reconhece Chalmers (2003), comparado a outros estudos com contextos semelhantes. O autor sugere ainda que os formuladores de políticas realizem uma revisão sistemática do tema investigado, selecionando os estudos mais compatíveis com o objetivo da pesquisa. 

Essa prática poderia evitar o uso de evidências incapazes de sustentar a hipótese de uma política pública, o que possivelmente levaria a uma solução inadequada para o problema abordado.

O método sugerido pela OCDE (2020) é uma abordagem ainda relevante para a aplicação de evidências. A Organização sugere uma estratégia de 6 etapas no caminho para os decisores políticos que pretendem utilizar as evidências na sua realidade, nomeadamente

  1. Compreender o papel das evidências no ciclo das políticas públicas;
  2. Obter a investigação apropriada;
  3. Interrogar e avaliar os resultados dos estudos;
  4. Aplicar as evidências à intervenção;
  5. Envolvimento com as partes interessadas e
  6. Avaliação do sucesso da elaboração de políticas baseadas em evidências.

O Ênfase pode ser acrescentado à etapa de avaliação dos achados do estudo, que muitas vezes é negligenciada pelos usuários das evidências que não dedicam esforço suficiente para avaliar criticamente os resultados da pesquisa. Este foi o caso do aconselhamento sobre cuidados infantis descrito por Chalmers (2003). O autor destacou que ele, junto com muitos leitores, considerava verdadeiro, sem dúvida, o conselho de Benjamin Spocks de acostumar os bebês a dormir de bruços, em vez de de costas. Isto evitaria mortes por asfixia, mas, mais tarde, provou ser muito letal para bebés que estariam em maior risco de síndrome de morte súbita infantil (SMSI) (Parkhurst 2017). Este caso exemplifica a importância de avaliar cuidadosamente as evidências utilizadas e contrastar seus resultados com outras descobertas científicas.

Outra parte importante da narrativa da EBP é que, além de serem consumidores, os governos também podem ser produtores de evidências. Para apoiar esta afirmação, Haynes et al (2012) propõem que líderes governamentais adotem Randomised Control Trials (RCTs), um método de investigação que permite medir a eficácia de uma intervenção. Uma das vantagens deste método é que permite aos implementadores de políticas quantificar os resultados dos seus programas e comparar as mudanças observadas em grupos de pessoas que receberam a intervenção e aqueles que não a receberam. Existem, certamente, limitações à utilização de RCTs como a dificuldade em isolar os efeitos de uma política pública de fatores externos (Haynes et al 2012) e os elevados custos de monitoramento de indivíduos durante longos períodos. No entanto, esta é uma ferramenta poderosa para estimular a avaliação de políticas dentro das instituições governamentais, fortalecendo a capacidade científica dos governos.

Limitações do uso de evidências

Aplicar evidências à elaboração de políticas pode ser uma medida arriscada quando se considera a natureza complexa das ciências sociais. As iniciativas baseadas na investigação não estão protegidas do fracasso e não podem ter os seus resultados garantidos por descobertas científicas anteriores. É necessário, assim, reconhecer as limitações do uso de evidências, compreendendo o que este exercício pode realmente oferecer soluções políticas.

Os defensores da abordagem EBP sustentam que este método é uma forma mais objetiva de fazer políticas públicas. Embora possa ser verdade, o uso de evidências não elimina a política e os valores do processo de tomada de decisão. Marmot (2004) afirma que os líderes públicos são “mentes ocupadas” (p. 906) que tentam conciliar a ciência com os seus valores e crenças pessoais. Na verdade, a concepção de programas governamentais depende dos interesses de múltiplos atores políticos que tentarão persuadir os decisores a seguir o seu ponto de vista. Neste esforço, até mesmo as evidências podem ser manipuladas para apoiar um interesse político, como também foi observado por Parkhurst (2017) na sua definição de “viés técnico” (p. 7), que representa a utilização de resultados de investigação sem respeitar princípios científicos. Cairney e Oliver (2017) parecem ampliar esta visão ao acrescentar que os valores são uma parte inerente da produção de evidências.

Outra limitação que pode ser observada no uso de evidências é a invisibilização intencional de resultados indesejados de uma pesquisa. Chalmers (2003) foi preciso ao afirmar que resultados em desacordo com a hipótese inicial do estudo tendem a ser ocultados pelos pesquisadores, que terão menos probabilidade de apresentar suas descobertas à comunidade política. Esta tendência também pode ser observada dentro de instituições governamentais, onde os líderes departamentais muitas vezes se esforçam para encobrir ou modificar os resultados insatisfatórios de uma política pública implementada, tentando evitar repercussões políticas negativas. Como resultado, intervenções ineficazes são mascaradas e mantidas fora do radar de potenciais investigações científicas, limitando a qualidade da evidência que poderia ser produzida. Há, portanto, um conflito paradoxal entre evidência e política: embora a primeira dependa da última para ser adotada, podem ter intenções opostas.

O que conta como “boas evidências” na formulação de políticas

Devido à complexidade da tradução da ciência para a arena das políticas públicas, existe uma preocupação comum sobre o que poderia ser considerado “Boa Evidência”. A primeira coisa a ter em conta é que a evidência é um fator, entre outros, a ser analisado no processo de elaboração de políticas. Os líderes governamentais estão rodeados de interesses políticos e de informação, partilhando o poder com muitos outros intervenientes na agenda política (Cairney e Oliver 2017).

“Os líderes governamentais estão rodeados de interesses políticos e de informação, partilhando o poder com muitos outros intervenientes na agenda política.”

Portanto, boas evidências seriam aquelas cujas conclusões pudessem ser facilmente acessadas e compreendidas pelos formuladores de políticas. Assim, é relevante dedicar esforços para comunicar evidências aos seus potenciais usuários, estimulando-os a se engajarem na utilização de seus resultados.

Em segundo lugar, mas não menos importante, não se pode esquecer que evidências devem seguir o método científico. Isto deverá evitar imprecisões metodológicas na condução de estudos de políticas e resultados que não sejam confiáveis. Além disso, a comparação de diferentes artigos também faz parte da construção de evidências, uma vez que, como afirma Chalmers (2003), a ciência é um trabalho cumulativo. Isto significa que, mesmo que os resultados de uma pesquisa apoiem fortemente uma intervenção, não devem ser utilizados sem serem contrastados com outras fontes. Tendo todos estes aspectos em mente, pode ser mais fácil diagnosticar se um estudo é adequado para sustentar ou não o processo de formulação de políticas.

Por último, uma característica crucial de boas evidências é a adequação à política analisada. Os estudos selecionados deverão dialogar com o objetivo da intervenção e os resultados desejados para garantir que os resultados possam ser aplicados ao contexto. Embora os resultados de um estudo nem sempre possam ser esperados após a implementação de uma intervenção, eles precisam ser produzidos num ambiente semelhante ao do programa. Isto permitiria a replicabilidade dos resultados da investigação, que é um dos principais objectivos da adopção de evidências para a formulação de políticas. Sutcliffe e Court (2005) destacam outros aspectos das evidências de alta qualidade, como a credibilidade e a relevância dos estudos para o campo de pesquisa, que também podem ser úteis ao esforço de seleção de evidências.

Conclusão

Depois de tudo o que foi dito, o principal objetivo das evidências é avaliar o que funciona e encurtar os caminhos dos implementadores de políticas nos seus esforços para melhor responder às exigências sociais.

Os métodos e padrões do que poderia ser considerado “boa evidência” visam facilitar a produção de políticas públicas mais eficazes, conduzindo, em última análise, a melhorias no bem-estar da população. Este estudo revelou a contribuição da pesquisa científica para esta causa e os benefícios da formulação de políticas baseadas em evidências, destacando as circunstâncias que permitem a tradução das evidências para o contexto das políticas públicas.

Os resultados confirmaram que os governos que adoptam evidências na formulação de intervenções sociais registam melhorias nos seus resultados políticos, especialmente em programas de grande escala.

Ainda existe uma oportunidade para que as evidências sejam reforçadas na arena política, principalmente através do desenvolvimento de capacidade científica entre os decisores políticos. Isto seria importante não apenas para aumentar o uso de evidências, mas também para melhorar a qualidade da prática baseada em evidências. Além disso, novas discussões poderiam ser feitas sobre a natureza subjetiva da seleção de evidências e como abordar o conflito entre a ciência e os interesses políticos. Ainda assim, este estudo contribuiu para a compreensão do impacto da PBE na ação governamental, corroborando que a evidência é o próximo passo a ser dado na direção de soluções mais bem sucedidas para os desafios da sociedade

Biderman, C., Mendonça, M. M. D., Mello, P. A. S., Oshiro, C. H., & Foditsch, N. (2021). Big data for sustainable urban development: creating evidence-based urban public policies. Available at: https://smartcities-bigdata.fgv.br/publicacoes. 

Cairney, P., & Oliver, K. (2017). Evidence-based policymaking is not like evidence-based medicine, so how far should you go to bridge the divide between evidence and policy?. Health research policy and systems, 15(1), 1-11.

Chalmers, I. (2003). Trying to do more good than harm in policy and practice: the role of rigorous, transparent, up-to-date evaluations. The Annals of the American Academy of Political and Social Science, 589(1), 22-40.

Haynes, L., Goldacre, B., & Torgerson, D. (2012). Test, learn, adapt: developing public policy with randomised controlled trials. Cabinet Office-Behavioural Insights Team.

Marmot, M. (2004). Evidence based policy or policy based evidence? BMJ: British Medical Journal 328:906. 

Sutcliffe, S., & Court, J. (2005). Evidence-Based Policymaking: What is it? How does it work? What relevance for developing countries? London: Overseas Development Institute.

OECD (2020). Building Capacity for Evidence-Informed Policy-Making: Lessons from Country Experiences. OECD Publishing.

Parkhurst, Justin (2017). The politics of evidence: from evidence-based policy to the good governance of evidence. Routledge Studies in Governance and Public Policy. Routledge, Abingdon, Oxon, UK. ISBN 9781138939400. 

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