Vinícius Muller
Vinícius Müller é Doutor em História Econômica. Professor e escritor, autor de “Educação Básica, Financiamento e Autonomia Regional: Pernambuco, São Paulo e Rio Grande do Sul, 1850-1930” e “A História como Presente”.
Não é a indústria
É comum e compreensível que as pessoas busquem identificar as causas e consequências que a história, e só ela, é capaz de nos oferecer. O que veio antes, o que veio depois e como que essas duas dimensões temporais se conectam de modo a nos dar certa ordem ou certa racionalidade para o modo como entendemos o mundo.
Ou seja, assim como a razão busca ‘domesticar’ o que percebemos do mundo a partir do tempo e do espaço, a história é usada como o campo que nos possibilita apontar quais as possíveis combinações entre os vários elementos, de modo a nos mostrar o que é causa e o que é consequência.
Dessa forma, há aproximadamente um século, parte significativa dos governos e sociedades do mundo, inclusive os brasileiros, identificaram que haveria – a partir de indícios muito convincentes – uma relação de causa e consequência entre o surgimento e crescimento da indústria e o desenvolvimento econômico e social dos países. Tal hipótese era pertinente. Bastava observar com o mínimo de apuro como ocorria o processo de desenvolvimento em suas variadas facetas e nos variados países.
Aqueles que promoveram ‘decolagens’ de suas indústrias ao longo do século XIX alcançaram níveis maiores de desenvolvimento na ciência, na educação, na saúde, na qualidade de vida e de consumo de suas populações. E, portanto, àqueles que ainda não haviam ‘decolado’ restaria a opção de acelerar seu processo de industrialização, usando, para isso, os meios que estivessem disponíveis.
Na América Latina e, destacadamente no Brasil, esse meio disponível estava vinculado ao Estado, o único, em tese, a ter estratégia, escala, legitimidade e recurso para tanto. Nascia assim a industrialização liderada pelo estado que nos caracterizou em boa parte do século XX. E a crença de que o avanço da indústria ‘transbordaria’ ao ponto de garantir o nosso desenvolvimento educacional, científico e social.
A história não é dada com tamanha linearidade.
A hipótese de que o desenvolvimento estaria fundamentalmente vinculado à indústria gerou, inadvertidamente, uma cultura e uma ética que legitimava, entre outras coisas, que o gasto com a indústria deveria ser maior do que qualquer outro setor, que a proteção à indústria era intrinsecamente justificada e que, mesmo sob um estado autoritário, o crescimento da indústria era o alvo certo a ser alcançado. Desde então, gastamos mais recursos intelectuais, financeiros e sociais com o incentivo e formação de mão de obra para a indústria, por exemplo, do que na formação de professores.
O resultado é conhecido. Do ponto de vista econômico, a estagnação da produtividade ficou evidente quando o estado precisou rever sua capacidade de financiamento após sua quase-falência nas últimas década dos novecentos. A abertura dos mercados atrelada ao processo de globalização escancarou a falta de competitividade de nossa indústria nos últimos quarenta anos. E as regiões que receberam mais proteção e incentivo público para desenvolver a indústria não mantiveram, após ganhos iniciais, suas trajetórias de desenvolvimento.
Ou seja, a indústria pouco ‘transbordou’ nas regiões que mais precisavam.
Os motivos da 'desindustrialização'
A indústria cumpriu sua histórica missão com a melhoria de regiões que já tinham outros elementos fundamentais, como sistemas educacionais mais amplos, infraestrutura mais avançada e incentivos culturais e sociais ao empreendedorismo mais visíveis. Ou seja, a tração assegurada à indústria, resultante da hipótese de que ela ‘lideraria’ nosso processo histórico de desenvolvimento, funcionou melhor onde outros elementos já existiam. Portanto, onde esses outros elementos, como educação e ética empreendedora, eram mais fortes.
Desta forma, a pergunta se inverteu. Será mesmo a indústria o motor do desenvolvimento? É a partir do seu transbordamento que outros elementos se desenvolvem? É ela que ‘merece’ nossos preciosos recursos e políticas especialmente desenhadas?
Minha resposta é ambivalente. E aponta para o início do texto. O desenvolvimento, antes de ser liderado pela indústria ou qualquer outro setor (o mesmo vale para a agropecuária), é resultado de certo equilíbrio entre os elementos que o compõem. Não foi a indústria que ‘transbordou’ e sim a educação, a infraestrutura e a ética empreendedora que possibilitaram a ‘decolagem’ da indústria. Assim como as regiões cuja indústria floresceu tiveram mais recursos para investir em educação e infraestrutura. E o sucesso da indústria incentivou o fortalecimento da ética empreendedora.
Em outros termos, a história não deve ser vista apenas como um aquário onde encontramos nossas relações de causas e consequências, e sim, como uma trajetória formada por inúmeros subitens que se alimentam.
Se um deles for muito maior do que os outros, antes de estimular, vai devorá-los. Resumidamente, de forma provocativa – e talvez contraditória –, a indústria não vai voltar a cumprir sua histórica relevância no desenvolvimento brasileiro se mantiver sua postura de que merece ser protegida e reconhecida como mais importante. Ao contrário, a indústria só será novamente relevante na mesma envergadura que já foi quando perceber que não é ela que transborda ou que não é e ela que lidera. E sim, quando perceber que ela é o subproduto do desenvolvimento de outros itens, como educação e empreendedorismo.
O que me espanta é que ainda não conseguimos perceber que tais inversões em nosso modo de entender nossa própria história – e, portanto, o futuro – não estão, simplesmente, na apresentação de dados e narrativas que a justifiquem. E sim, na capacidade que temos de reequilibrar os pesos e hierarquias que criamos. Ou seja, que um maior desenvolvimento será factível quando não mais houver diferença no modo como hierarquizamos socialmente um diretor da indústria automobilística, por exemplo, e um professor do ensino fundamental. E que não é o mercado que define essa hierarquia. Ele apenas se adapta, no limite ético, a essa hierarquia que, no fundo carregamos e reproduzimos desde o momento que definimos o que nos serve mais e o que nos serve menos.
A pergunta, portanto, é clara: será que não teríamos uma indústria mais dinâmica e produtiva se tivéssemos, há um século, identificado que não é ela que lidera o desenvolvimento? E que se houvesse uma combinação mais equilibrada entre o quanto creditamos à indústria e o quanto creditamos à educação como lideranças do desenvolvimento, a própria indústria, hoje, não seria mais competitiva e produtiva?
Tenho convicção que só conseguiremos perceber a armadilha que nos metemos quando não houver mais diferença social – e não, simplesmente salarial – entre o diretor de uma indústria e um professor do ensino básico. Até lá o que teremos serão apenas políticas que podem ambicionar o desenvolvimento da indústria, mas que, no fim do dia, só garantirão mais distorção econômica e social. Ou aprendemos com a história ou o passado não sairá do presente. Basta olhar a proposta, mais uma, de incentivo à indústria lançada recentemente pelo governo. Uma lástima. Não há desenvolvimento.