Para onde vão as crianças nas férias?

Sara Vitral, Colunista da Quem te Representa?

Por Sara Vitral

Sara é mestra em educação pela Universidade de Stanford e administradora pública pela Escola de Governo da Fundação João Pinheiro. Servidora pública, é apaixonada por educação e pela potência do desenvolvimento das crianças. Estuda desigualdades socio-educacionais e trabalha com políticas para promoção da equidade. Sonha um Brasil no qual todas as crianças tenham seus direitos garantidos e respeitados, e as cidades sejam sustentáveis e para todos.

Para onde vão as crianças nas férias?

De acordo com o Censo de 2022, no Brasil temos 6.461.689 crianças de 0 a 4 anos, 7.011.282 crianças de 5 a 9 anos, e 6.992.746 crianças e adolescentes de 10 a 14 anos (IBGE – Censo 2022). A educação escolar é obrigatória dos 4 aos 17 anos, e a educação infantil gratuita até os 5 anos é dever do estado (Lei de Diretrizes e Bases da Educação – Lei Nº 9.394, de 20 de Dezembro de 1996).

Mas de Dezembro a Janeiro, e também em Julho, todos os anos, temos os períodos de férias escolares. As escolas “fecham”, para se organizar internamente, e há o recesso escolar. Mas as 20.465.717 crianças e adolescentes até 14 anos permanecem “por aí”, só que agora, sem ter política pública bem definida, e nem local seguro ofertado pelo poder público para onde ir todos os dias. Talvez fiquem em casa. 

Entretanto, a maioria dos profissionais continua trabalhando – profissionais estes que são mães, pais, e responsáveis, as famílias de nossas crianças. Muitas famílias conseguem se organizar para tirar férias junto de seus filhos. Mas e as que não conseguem?

O que acontece com as nossas crianças nas férias?

Em várias cidades, no período de férias escolares, o poder público organiza espaços e oficinas para receber as crianças. Entretanto, muitas vezes esses eventos são de curta duração, havendo necessidade de acompanhamento dos responsáveis junto às crianças. Em outros casos, a oferta de atividades acontece só em determinado dia ou semana. Essas ações são importantes, pois contribuem para a vivência da cidade e as possibilidades de desenvolvimento das crianças e adolescentes durante as férias, mas isso é verdade apenas para as famílias que conseguem se organizar para ter alguém com seus filhos, e que podem se deslocar para os pontos da cidade onde estão ocorrendo as oficinas. 

Para os familiares responsáveis que não podem tirar as férias junto de seus filhos, ou que não podem ficar com eles todo o período de férias escolares, resta encontrar soluções para o cuidado de seus filhos. Estas soluções são diversas, por exemplo contar com o apoio de familiares, buscar amigos próximos que podem auxiliar, contratar uma pessoa para ficar com os filhos na ausência dos responsáveis, deixar os filhos em “colônias de férias” (sendo estas duas últimas, geralmente, opções que necessitam de gastos financeiros). 

Em famílias com mais de um filho, pode acontecer também de o filho mais velho ficar responsável por cuidar dos irmãos mais novos enquanto os pais trabalham, fato que pode colocar uma responsabilidade grande sobre alguém que ainda está se desenvolvendo. E uma outra opção pode ser, ainda, ter que levar os filhos para o trabalho. 

Esse cenário, de não ter um “lugar certo” onde deixar as crianças, e ainda ter que trabalhar normalmente, é causa de cansaço para muitas famílias, especialmente para as mães, que socialmente são sobrecarregadas pela responsabilidade com o bem estar de seus filhos. 

Além disso, muitas vezes as crianças têm uma quebra em sua rotina, e por não terem ambientes adequados para brincar e conviver com outras crianças, para “gastar energia”, podem ter dificuldades para dormir, por exemplo, o que também afeta o sono das mães e responsáveis.

Outro ponto importante de se levar em consideração, é que a casa não é, necessariamente, um ambiente seguro. Pesquisa organizada pela ChildFund Brasil – Fundo para Crianças (disponível aqui) aponta que, em 2023, mais de 90% dos casos de violências contra crianças e adolescentes ocorreram nas residências (72,7% onde residem a vítima e o agressor; 15,7% onde reside a vítima; e 5,2% onde reside o agressor). 

Assim, apesar de ser responsabilidade também das famílias zelar pelo pleno desenvolvimento das crianças e adolescentes, é preciso que o poder público tenha ciência da importância da oferta de espaços adequados e seguros para permanência das crianças e adolescentes, e que muitas vezes, as residências podem não ser locais seguros.

E mesmo que as residências sejam locais seguros, as crianças, em especial, precisam de continuar a se desenvolver, a brincar e a conviver com outras crianças. Assim, mesmo que não haja violações graves de direitos, existe uma desigualdade no cuidado com as crianças que podem ir para outros espaços, participar de oficinas e colônias de férias, por exemplo, e crianças que acabam tendo que ficar em casa, especialmente se não tiverem os cuidados e espaços adequados para poderem brincar. Portanto, para além das desigualdades já existentes nas escolas, as férias escolares também são períodos que podem acentuar disparidades de oportunidades de desenvolvimento e acesso à cultura, ao lazer e ao esporte, para diferentes crianças em uma mesma cidade.

O que diz a legislação?

Lá no início, perguntei “O que acontece com as nossas crianças nas férias?” Estou tendo a liberdade de chamá-las de “nossas” crianças, porque de fato, elas são. A Constituição da República de 1988 estabelece que:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Art. 227 da Constituição Federal de 1988

O Estatuto da Criança e do Adolescente

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA – Lei Nº 8.069, de 13 de Julho de 1990), em seu Art. 4º, fortalece estes deveres, acrescentando também a necessidade de assegurar o acesso ao esporte. Estabelece, ainda, que a priorização das crianças, adolescentes e jovens, envolve a “preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas” e a “destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude”. Assim, 

“é responsabilidade de todos nós, e de todas as políticas públicas, zelar pelos direitos das crianças e adolescentes e pela garantia do seu pleno e adequado desenvolvimento.”

O Marco Legal da Primeira Infância (Lei Nº 13.257, de 8 de Março de 2016) também traz noções fundamentais de cuidado e articulação entre as políticas públicas e os entes federados (União, Estados e Municípios), para o pleno e adequado desenvolvimento de todas as crianças de 0 a 6 anos. É estabelecido, em seu Art. 8º, que “o pleno atendimento dos direitos da criança na primeira infância constitui objetivo comum de todos os entes da Federação”.

Assim, já existe, nas legislações vigentes, a compreensão da necessidade de um olhar intersetorial e interfederativo para as crianças e adolescentes, para a garantia de seus direitos. 

Além disso, quando pensamos nos períodos de férias escolares, é fundamental que levemos em consideração a necessidade de manutenção do trabalho dos familiares responsáveis por essas crianças e adolescentes, para geração de renda, e nos atentemos à sobrecarga que, hoje, recai especialmente sobre as mulheres, mães. 

Direitos Constitucionais

A educação é a política que parece ser mais “naturalmente” associada, em nosso imaginário, ao cuidado com as crianças em períodos contínuos de tempo. Entretanto, todas as políticas devem se responsabilizar por esse cuidado. As férias escolares podem ser um momento importante para desenvolver e garantir a efetividade da intersetorialidade, muito falada em documentos oficiais, mas pouco executada, e também para a efetivação dos direitos à assistência social, cultura e esporte, para além do à educação, previstos na Constituição Federal de 1988.

Por exemplo, no Art. 203, é definido que a Assistência Social tem como alguns de seus objetivos, “a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência”, “o amparo às crianças e adolescentes carentes”, e “a redução da vulnerabilidade socioeconômica de famílias em situação de pobreza ou de extrema pobreza”. 

Já o Art. 215, diz que “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”. 

No que se refere ao esporte, o Art. 217 estabelece que “É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um”. E mesmo no que se refere à educação, direito de todos e dever do Estado e da família, é definido, no Art. 205, que esta será “promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.

Uma reflexão necessária

Assim, trago aqui uma reflexão, para todos nós, cidadãs, cidadãos, e agentes públicos: 

Como podemos pensar políticas integradas para as crianças e adolescentes viverem plenamente seu potencial e vivenciarem seu município? 

Um Plano Municipal para Crianças e Adolescentes me parece um passo essencial e ideal para pensarmos cidades e uma sociedade que de fato cumpram seu papel constitucional de garantia dos direitos da infância e da adolescência.

Entretanto, um Plano Integrado de Férias Escolares pode ser uma primeira ação, um primeiro passo para colocar em prática a ação conjunta das políticas de cultura, esporte, saúde, assistência social e educação, promovendo as oportunidades de lazer e desenvolvimento para todas as crianças, em locais seguros da cidade. Projetos de Lei já foram propostos na direção de garantir apoio ininterrupto às crianças e famílias (PL 351/2015, apensados os PL 1629/2019 PL 871/2015), e se aprovados, podem indicar avanços, mas estão muito focados na atenção às crianças de 0 a 3 anos, e no papel das creches, e não no trabalho em rede para o cuidado com as crianças.

O que trago aqui é a necessidade de termos políticas intersetoriais bem estruturadas, que garantam os direitos de todas as crianças e adolescentes de maneira integral, indo além das políticas educacionais. Nesse olhar, precisamos levar também em consideração os responsáveis, especialmente, as necessidades de mulheres mães, que devem contar com o apoio do estado e da sociedade para manterem seus trabalhos e rotina também no período de férias escolares. 

Assim, oficinas de curta duração, espaçadas, espalhadas pela cidade, não atendem à necessidade de ter um local seguro para deixar os filhos durante o dia de trabalho nas férias escolares. 

É preciso construir políticas que promovam a equidade de direitos e oportunidades de desenvolvimento para todas as crianças e adolescentes de cada cidade brasileira. Essas políticas, apesar de focalizadas no atendimento ao direito das crianças, também devem ser estruturadas para garantir a equidade nos direitos das mães, de manterem seus empregos e salários, e de terem vida digna. 

Vamos pensar como tornar ações assim – bem estruturadas para as crianças e adolescentes, e que permitam a tranquilidade de seus responsáveis, especialmente das mulheres mães – realidade em nossos municípios?

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