Rio de Janeiro, da tensão racial à atenção social

Foto de Perfil de Anderson Quack

Por Anderson Quack

Cria da Cidade de Deus,  hoje é assessor de Participação Social de Diversidade do Ministério do Planejamento e Orçamento.

Quack foi Diretor do Departamento de Fomento e Promoção da Cultura Afro-Brasileira e Presidente Substituto da Fundação Palmares/MinC; Secretário Geral da Central Única das Favelas – CUFA e agente cultural desde sua fundação. É autor do livro No Olho do Furacão, e co-autor de outras obras.

Rio de Janeiro, da tensão racial à atenção social!

Dia 21 de Março é comemorado o Dia Internacional Contra a Discriminação Racial.

Nesse dia ocorreu uma manifestação pacifica contra uma lei que limitava onde os negros  poderiam circular na África do Sul.  A manifestação foi interrompida brutalmente por forças do Estado ocasionando a morte de 69 pessoas e outras 186 ficaram feridas. Esse episódio ocorreu em 1960, contudo, na África do Sul, durante 5 décadas, os negros viveram sob o regime do Apartheid. O regime permaneceu entre 1948 e 1994, protagonizando os maiores horrores possíveis a esta população e sendo uma das maiores vergonhas da humanidade.

Aqui, no Brasil “pós abolição”, nunca tivemos o modelo de segregação que ocorreu nos EUA e nem na África do Sul. Mas, temos o nosso próprio modelo de racismo cotidiano, também chamado e conhecido como racismo velado. Aquele que quando perguntamos se existe racismo no Brasil todos concordam e levantam a mão. Na pergunta seguinte, quando perguntamos quem desse mesmo grupo é racista, nenhuma mão se levanta, esse é o Racismo à Brasileira.

Quero fazer um recorte sociorracial e colocar uma lupa no que diz respeito à cidade do Rio de Janeiro, que flerta sempre com esse ideal de segregação que gera uma tensão em toda a sociedade. O componente mais sensível dessa tensão se dá principalmente nos carioquicenos finais de semana ensolarados – os famigerados domingos de sol, nos quais milhares de jovens negros da cidade do Rio e do Grande Rio desembarcam  nas praias, principalmente da Zona Sul carioca e Barra da Tijuca. 

Esses jovens negros, trajando, em geral, uma bermuda tactel, chinelo, cabelo loiro e só! Porém, desde a abertura do túnel Rebouças, que liga a Zona Norte à Zona Sul da cidade, há tensões dos moradores da Zona Sul com tudo e todos que vêm do outro lado: baixada, subúrbio e favelas. 

São notórias e públicas, as ações destes moradores que já chegaram a cercar parte da praia, dentre outras diversas manifestações públicas que foram feitas para que o túnel não fosse aberto e a praia se tornasse cada vez mais um privilégio de poucos.

No Álbum Caravanas, do Chico Buarque, lançado em 2017, há uma canção que tem participação do meu amigo e irmão Rafael Mike, figura emblemática da cultura carioca e do Brasil – Mike é um dos precursores do Passinho! A canção narra parte dessa tensão descrita, tensão essa que o próprio Mike viveu intensamente vindo da Baixada Fluminense para o centro e Zona Sul da cidade. As caravanas eram, nos anos 90, forma de identificação dos bondes dos bailes funks cariocas :

“Quando pinta em Copacabana

A caravana do Arará, do Caxangá, da Chatuba

A caravana do Irajá, o comboio da Penha

Não há barreira que retenha esses estranhos

Suburbanos tipo muçulmanos do Jacarezinho

A caminho do Jardim de Alá

É o bicho, é o buchicho, é a charanga”

Em março, nos despedimos do verão. Em tese, essa tensão deveria se dissipar. Mas não existe na verdade uma migração e consequentemente uma permanente gestão desse racismo na nossa sociedade. Onde, a cada 21 minutos, um jovem negro é morto em nosso país e, em especial no Rio de Janeiro. Esses casos de violência contra o jovem negro são tão horríveis e vergonhosos hoje, quanto foram no Apartheid que durou 5 décadas na África do Sul e na segregação cercada pela luta por direitos civis nos EUA. No Brasil e, sobretudo, no Rio de Janeiro é cotidiano e muitas das vezes silencioso esse drama social.

A canção Caravanas do Chico dá conta também de falar do lugar dos esteriótipos, quando ele traz o ponto de vista do morador da Zona Sul sobre esses jovens que desembarcam de suas Caravanas:

“Diz que malocam seus facões e adagas

Em sungas estufadas e calções disformes

É, diz que eles têm picas enormes

E seus sacos são granadas

Lá das quebradas da Maré”

Recentemente tivemos uma discussão sobre jovens negros só poderem ser presos em flagrante. Evidente que o recorte racial nessas questões não é explícito. O termo jovem negro não é usado, mas esta implícito nos dados. Tanto do genocidio dos jovens negros quanto do encarceramento em massa. 

“O governo do estado do Rio de Janeiro e a prefeitura da capital fluminense entraram em acordo com o Ministério Público Federal (MPF) e a Defensoria Pública estadual nesta quarta-feira (21) para que não haja mais apreensão e condução de adolescentes para a delegacia sem flagrante ou decisão judicial. Trecho retirado da matéria da Agência Brasil em 21 de fevereiro de 2024

Dia 21 de Março é um dia que remonta toda uma luta na história mundial, e que, para nós negros parece que nunca terá um fim. Hoje, em um mundo de pós colonialismos, nós negros continuamos sendo vistos como escravos. Quando não querem nos matar, querem nos mandar de volta pra África ou para Favela, como em mais esse trecho da canção:

“Com negros torsos nus deixam em polvorosa

A gente ordeira e virtuosa que apela

Pra polícia despachar de volta

O populacho pra favela

Ou pra Benguela, ou pra Guiné”

Chico de fato é um exímio cronista e consegue com sua arte nos fazer enxergar, da sua perspectiva esse drama, muitas vezes de valendo de algumas metáforas, o que nós enquanto sociedade ainda não conseguimos fazer em hipótese alguma, é como a data pede “eliminar a discriminação racial” ao contrário, parece que ano após ano a coisa vem cada vez mais piorando. O Álbum do Chico Caravanas de 2017 parece tão atual quando lemos mais esse trecho da canção:

“Tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria

Filha do medo, a raiva é mãe da covardia

Ou doido sou eu que escuto vozes

Não há gente tão insana

Nem caravana do Arará

Não há, não há”

Não sou cronista como Chico Buarque, nem tão pouco especialista em segurança pública, como Luiz Eduardo Soares. Sou apenas um homem preto nascido e criado na Cidade de Deus que sobreviveu ao racismo e a violência e segue buscando alternativas e contribuindo para um Estado brasileiro inclusivo e antirracista.

Parte dessa contribuição está no livro que será lançado no Rio de Janeiro no próximo dia 11 de abril: ‘A força das Falas Negras‘. É uma coletânea autobiográfica com reflexões sobre racismo e uma importante contribuição nessa esteira do letramento racial. Essa é uma das formas que temos de lutar pela “eliminação de todas as formas de preconceito e discriminação racial”.

Veja também a outra coluna do autor:

A insegurança e a cidadania
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