Por Humberto Dantas
Doutor em ciência política pela USP, professor universitário e diretor-presidente do Movimento Voto Consciente.
A sólida base democrática dos anos 80 – um ano da tentativa do golpe de 2023
A responsabilidade de estar envolvido num projeto denominado “Quem te Representa?” é imensa e repleta de simbolismos. Uma revisão histórica sobre a importância de movimentos desse tipo parece relevante para localizar impulsos dessa natureza em nossa sociedade.
Sou diretor-presidente de uma ONG, o Movimento Voto Consciente (MVC), que nasceu em 1987 para tratar de direitos políticos e da valorização da Democracia em nosso país. Talvez sejamos uma das mais longevas organizações desse tipo em atividade ininterrupta no Brasil, junto com algumas poucas entidades do terceiro setor, com destaque para pastorais da Igreja Católica, tais como Fé e Política, Justiça e Paz etc. e alguns partidos, que se diferenciam de nós por terem posições ideológicas minimamente nítidas e disputarem formalmente votos.
O MVC nasceu em meio ao processo constituinte brasileiro, um dos mais exemplares e participativos da história do planeta, e sobre o qual me debruçarei em textos futuros nesse espaço dividido de forma democrática e coletiva com pessoas capazes de simbolizar diversidades em múltiplas direções e significados.
A importância da década de 80 do século XX
Nesse primeiro contato com o projeto, quero tentar registrar, mais uma vez, repetindo movimento que tenho feito nos últimos dez ou quinze anos, a importância da década de 80 do século XX em nossa trajetória democrática. Não entenda isso como gesto saudosista de quem nasceu em 1975 e assistiu a história ocorrendo entre a infância e a adolescência. Compreenda este texto como mais um gesto de valorização de nossa realidade.
E acredite: sem os fatos políticos ocorridos no período de 1979 a 1989, o Brasil não teria atingido níveis razoáveis de democratização. Falta muito? Sem dúvida alguma. Poderia ter sido melhor? É óbvio que sim. Mas o intuito aqui é registrar a importância de desmistificarmos a “lenda da década perdida” quando nos referimos aos anos 80.
Tenho plenas condições de reconhecer, antes de trazer o que tenho a defender aqui, que o período foi economicamente trágico, mas seria muito responsável que o uso do termo “década perdida” fosse sempre sucedido de um aposto verificador que deixasse evidente: “do ponto de vista econômico”. Acompanhe.
A década da consolidação ano a ano
A década de 80 foi a década da consolidação da democracia no país. Em agosto de 1979, o regime autoritário militar editou a “Lei da Anistia”, concedendo “perdão” aos perseguidos políticos. Longe do ideal e preparando o terreno para movimento que aliviaria de forma expressiva a condição dos militares no alvorecer da democracia, foi um marco para a reorganização da diversidade política em nosso país.
Entre 1980 e 1981 vimos ressurgir, mesmo que respondendo intuitos estratégicos eleitorais do regime autoritário, a pluralidade partidária. Em 1982, reorganizamos as eleições diretas para governador em todos os estados do país, e com a posse dos parlamentares eleitos em 1983 assistimos ao surgimento do maior movimento de massas de nossa história: o Diretas-Já, baseado na tramitação de propostas para o voto livre para presidente da República no Congresso Nacional.
Em 1984, milhões de pessoas se espalharam pelas ruas de diferentes cidades da nação pedindo o voto direto para o Planalto. O projeto não teve êxito diante de manobras e estratégias regimentais da situação, mas em 1985 o país elegeu indiretamente um presidente civil, algo que não ocorria desde a saída de João Goulart do poder em 1964.
A morte de Tancredo Neves antes da posse trouxe questionamentos com base nos traumas autoritários da época, mas o vice, José Sarney, foi empossado. Já em 1986, novas eleições para os governos estaduais, com a escolha de parlamentares que comporiam o Congresso Nacional e, concomitantemente, a Assembleia Nacional Constituinte, instalada em 1987.
Ao longo desse ano, e de boa parte de 1988, milhões de brasileiros se envolveram em propostas, abaixo-assinados, emendas ao anteprojeto, reuniões temáticas e debates que culminariam, de forma bastante participativa, na Constituição de 1988. Em 1989, o derradeiro ato desse período: a eleição direta de Fernando Collor de Mello à Presidência, numa disputa que contou com mais de 20 candidaturas e um segundo turno disputado contra o PT de Lula.
Deixamos os anos 80 assistindo, em março de 1990, à posse de um presidente eleito diretamente pelo povo, algo que não ocorria desde 1961 com Jânio Quadros.
Releia quantas vezes quiser os parágrafos anteriores, pesquise mais sobre cada um desses fatos, e diga: isso é mesmo a década perdida? Se sua resposta for positiva, por desdenhar de todos esses atos, considere-se uma pessoa pouca afeita à democracia. Gostemos ou não de parte do que tivemos, sem essas ocorrências nossa história teria sido outra. Os anos 80 são a base sólida que nos permitiu, por exemplo, eleger Lula em 2002 e Bolsonaro em 2018 como presidentes que contrariavam as tendências ideológicas dos pleitos presidenciais anteriores sem rupturas institucionais agudas associadas aos resultados das eleições. São também responsáveis por assistirmos dois processos de impeachments, raros no universo dos presidencialismos, sem rupturas institucionais agudas. Garantem também o fortalecimento da esquerda aguerrida nas ruas pós redemocratização, bem como o ressurgimento mais recente de uma direita intensa.
Percebe? Parte significativa do que fizemos sobre as bases construídas nos anos 80 nos permite chegar aonde chegamos em 2024.
Aqui, no entanto, existe uma ressalva: o 08 de janeiro de 2023, que completa um ano. Tal movimentação foi a única tentativa minimamente concreta de golpe de Estado que, mesmo atabalhoada, esdrúxula, patética e alucinada, nos acometeu desde que construímos a sólida base institucional democrática dos anos 80. É pouco se compararmos com outros países, principalmente, de nosso continente. É muito se pensarmos, obviamente, no que estava em jogo pelas mãos de quem se envolveu direta e indiretamente em tal assombro.
Diante de tais fatos, meu compromisso nesse espaço será com a História de nossa Democracia, com a valorização dos anos 80, e com as bases essenciais para que ela continue viva. Para tanto, nos resta pensar o quanto ainda temos pela frente para sua consolidação.
O principal desafio, a meu ver, como ativista da causa democrática, está associado à elevação dos níveis educacionais e culturais associados à política. Quanto mais nos aproximarmos dela, a conhecermos, a vivermos e a protagonismos, mais maduros estaremos. E que assim seja.
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Parabéns ao Doutor e Professor Humberto Dantas pelo riquíssimo conteúdo apresentado aí leitores do QTR. Eu endosso todas as suas palavras e com certeza a década dos anos 80 foram marcantes e influenciaram positivamente pra o que temos de Democracia hoje no Brasil. Temos muito a crescer e evoluir, mas o caminho é esse de termos jovens mais conscientes e participativos das decisões políticas do nosso País.
Feliz pelos esclarecimentos e por aprender mais sobre a democracia.