A política de cotas nas eleições e a cultura política das eleitoras

Foto de Milene Bordini - mulher branca com cabelos curtos castanhos e óculos

Por Milene Bordini

Especialista em Comunicação Eleitoral e Marketing Político, Direito da Mulher, Direitos Humanos, Gestão Pública, Inteligência Socioemocional e Docência do Ensino Superior.  Mentora Política com formação pelo RenovaBR, Instituto Update, Ousadia Política, Elas no Poder, Movimento Elas na Política, Instituto Alziras e mais.

Mestranda em Ciência Política, tendo como tema de pesquisa as cotas eleitorais e sua influência na cultura política das eleitoras. 

A política de cotas nas eleições e a cultura política das eleitoras:

Como podemos aumentar a real ocupação dos cargos eletivos por mulheres?

Mesmo com mais mulheres chefes de países, a desigualdade de gênero se mantém na baixa ocupação de cargos eletivos na América Latina. Apesar das mulheres representarem mais da metade do eleitorado da população mundial, a representação política não corresponde a esta mesma porcentagem.

Este cenário inspirou, a partir dos anos 1990, a criação de política de cotas de gênero para ampliar a representação feminina na esfera política mundial.

O surgimento de cotas para mulheres

As cotas para mulheres foram pensadas como um instrumento para aumentar o número de eleitas para os cargos públicos, mas sua aplicação depende de diversos fatores. Sua adoção na América Latina se espalhou a partir do compromisso de promoção da igualdade de gênero firmado na Conferência de Beijing de 1995 (IV Conferência Mundial sobre a Mulher) e podemos pensar nas cotas de gênero na política como medidas afirmativas de reserva de espaços ou recursos para a promoção da eleição de mulheres.

No contexto latino-americano, a Argentina foi pioneira, em novembro de 1991, ao sancionar a lei de Cotas Femininas para cargos legislativos nacionais. Naquele ano, antes da sanção da norma, a Câmara de Deputados renovou 130 vagas. Apenas seis mulheres foram eleitas. Na primeira eleição em que a lei de cotas passou a valer, em 1993, dos 127 parlamentares escolhidos pelo voto, 33 eram mulheres.

A Lei nº 24.012, de 1993, alterou o Decreto nº 2.135, de 1983, o Código Eleitoral Argentino, para assim dispor:

"Las listas que se presenten deberán tener mujeres en un mínimo del 30 % de los candidatos a los cargos a elegir y en proporciones con posibilidad de resultar electas. No será oficializada ninguna lista que no cumpla estos requisitos.”
- Artículo 60 do Código Eleitoral Argentino

Similar à norma vigente no Brasil desde o pleito de 2002, a legislação argentina obriga partidos a reservar 30% das vagas nas listas de candidatos para mulheres. Hoje, no país vizinho, mulheres ocupam 39% da Câmara de Deputados e 42% do Senado. Em 2017, um grupo de deputadas conseguiu votar a proposta de aumentar a cota de representação política feminina de 30% para 50%.

Olhando para o Brasil

No Brasil, a Lei 9.100/95 foi a primeira proposta nessa direção. De autoria de Marta Suplicy, à época deputada federal, a legislação previa que no mínimo 20% da lista de candidatos de cada partido ou coligação deveria ser preenchida por candidatas mulheres. A proposta, apelidada de “Lei das Cotas”, valia, contudo, apenas para as Câmaras Municipais.

Dois anos depois, em 1997, discutia-se no país a importante edição de um conjunto de normas que regulamentasse o processo eleitoral, já que o Brasil carecia de um sistema eleitoral unificado e permanente. No meio dessa intensa discussão, foi forjada a lei 9.504/97 – ou Lei das Eleições.

Histórico das Leis de Cotas em eleições - disponível em https://atendadascandidatas.org/wp-content/uploads/2023/04/CARTILHA-2.pdf
Fonte: Cartilha Incidência Política contra a PEC 09/2023 - A Tenda

Presentes até então apenas nas Câmaras Municipais, as cotas de gênero passariam, a partir dali, a valer também para as Assembleias Estaduais e para a Câmara dos Deputados. Ficou de fora, no entanto, o Senado Federal. Conjuntamente, houve um aumento no percentual mínimo de candidaturas para as listas de candidatos(as) de partidos e coligações. Passou-se, assim, do mínimo de 20% instituído em 1995, para 30% – com a ressalva de que em 1998, na eleição um ano após a vigência da Lei das Eleições, as cotas seriam transitoriamente de 25%, atingindo 30% apenas nas eleições subsequentes.

As eleições de 2018 inauguraram duas importantes novidades que impactaram diretamente na participação política de mulheres.

Empresas foram impedidas de fazer doações para campanhas políticas, o que levou a Câmara dos Deputados a criar um Fundo Eleitoral (FEFC) com recursos públicos da ordem de R$ 1,7 bilhões destinados exclusivamente para esse fim. Pelas novas regras eleitorais, as mulheres candidatas têm direito a pelo menos 30% desse montante, assim como a pelo menos 30% dos recursos do Fundo Partidário e do tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na TV.

Essa conquista recente ajuda a explicar, em parte, o aumento da presença de mulheres na Câmara dos Deputados nas últimas eleições.

Nas eleições de 2022, 91 mulheres foram eleitas a deputadas federais. Mas esse número representa apenas 17,7% do total de 513 parlamentares.

De acordo com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), 9.794 mulheres se candidataram aos cargos disponíveis, incluindo para posições de suplentes, e 302 foram eleitas – o equivalente a quase 3,1%. Já entre os homens, 19.072 se candidataram e 1.346 foram eleitos– pouco mais de 7%. O levantamento do TSE também mostra que, ao todo, foram eleitas 39 mulheres pretas, cinco indígenas, 71 pardas e 184 brancas, de acordo com a autodeclaração de cada uma.

Apesar dos números continuarem abaixo do desejado, a representação feminina na Câmara aumentou, passando de 77 para 91 (alta de 18,2%). Já no Senado, houve queda de 11 para dez senadoras eleitas. Porém, ao analisar o número de mulheres candidatas, foram 34% de mulheres, número que está acima da cota partidária (de 30%).

Gênero e a cultura política
Destaque do texto: "A pouca representação da mulher na vida política e seu estado subordinado na economia, na sociedade e na família provavelmente não mudarão, se não se expandir (e muito) uma representação política efetivamente pluralista e se a participação das cidadãs na construção de políticas públicas permanecer limitada."

A cultura política alude à dimensão subjetiva dos sujeitos políticos e envolve expectativas e comportamentos de determinada sociedade que influenciam a mentalidade institucionalizada na estrutura política. A orientação dos cidadãos é direcionada pelo seu processo de socialização política e pelo desempenho das instituições como mediadoras da relação entre Estado e sociedade. No interior da cultura política, se constituem identidades de ordem nacional, regional, social, étnicas, de gênero, etc.

Encontramos na pesquisa “Eleitas: Mulheres na Política” (2020), que as mulheres estão, cada vez mais, ocupando o poder. Esse movimento das mulheres, que busca espaços no sistema político, não quer nada além do justo: alcançar a paridade de gênero. Paridade é a representação física real da população na política do ponto de vista descritivo, ou seja, da presença dos seus corpos. Em outras palavras, metade homens e metade mulheres na tomada de decisão, nos cargos públicos, nos conselhos. Em todas as instituições. Mulheres na política fazem a diferença quando têm consciência das desigualdades de gênero. Significa que enxergam as violações de direitos e as amarras impostas pela sociedade e querem se libertar delas.

Fazendo a ponte Brasil e Argentina, Eva Mieri, vereadora de Quilmes, reconhece que a promoção da diversidade nas instâncias de poder é tarefa necessária daquelas e daqueles que conseguiram ocupar esse espaço:

"É nossa tarefa que essas mulheres dos bairros se tornem representativas, que as prostitutas, que as lésbicas, que as trans se tornem representativas, que as cooperativistas, catadoras, também se tornem representativas porque essas vozes não são escutadas."
Foto de Eva Mieri
Eva Mieri
Vereadora de Quilmes, Argentina

A análise da cultura política de uma sociedade pressupõe a necessidade de caracterizar os diferentes contextos histórico-culturais que contribuíram para sua configuração.

A presença feminina na esfera pública é um fato e as mulheres têm aumentado sua participação nos diversos segmentos sociais. No que se referem às culturas políticas, as mulheres também compartilham a arena política com os demais agentes, no entanto, a inserção feminina nesse âmbito diferirá em relação a cada cultura política. Somente por meio de um progresso notável na cultura de igualdade de gênero é que esses obstáculos serão definitivamente superados. Desde finais da década de 1990 tem-se observado um retorno do argumento cultural para explicar os limites e os avanços na construção de uma cidadania plena das mulheres.

Encontramos em Pinto (2001) que, ao examinarmos a participação política da mulher no Brasil, trazemos à discussão a problemática da baixa participação, quer sejam tomados como referência os legislativos estadual, federal ou municipal, quer se tomem os cargos executivos em todos os níveis. Mesmo após a lei que garantiu cotas para as mulheres nas listas partidárias, as dificuldades se mantiveram, ou os partidos simplesmente não obedecem a lei ou completam suas listas com “falsas” candidatas que na verdade não fazem campanha, as chamadas “candidatas laranjas”. 

Sobre participação, Prioli (2021) nos traz que, quando os cidadãos perdem a confiança nas elites políticas, nos partidos, nos meios de comunicação e até nas instituições democráticas, é a própria democracia que sofre. Se o poder emana do povo, como diz a Constituição brasileira, o que sustenta um sistema político é o processo contínuo de legitimação das instituições e dos representantes. E esse processo não pode ser vivido apenas de quatro em quatro anos: ele precisa ser parte do dia a dia dos cidadãos. 

De acordo com Prá (2014) o compromisso de promover e garantir os direitos das mulheres nos ordenamentos jurídico e político dos Estados democráticos é eixo central da agenda feminista. Dos pontos de vista prático e teórico essa agenda realça o problema da subordinação feminina. Desde o(s) feminismo(s), a identificação da exclusão e da discriminação das mulheres ampliou o horizonte sobre o tema. Tal dinâmica sedimentou-se nas lutas pelo voto em séculos passados e desde os anos 1970 reverbera debates e ações contra os déficits da cidadania feminina.

Para Matos (2011) que a pouca representação da mulher na vida política e seu estado subordinado na economia, na sociedade e na família provavelmente não mudarão, se não se expandir (e muito) uma representação política efetivamente pluralista e se a participação das cidadãs na construção de políticas públicas permanecer limitada. Para Archenti e Tula (2009), as reformas eleitorais realizadas em alguns países latino-americanos, a partir da década de 1990, produziram resultados cuja análise é inevitável para compreender o acesso das mulheres a cargos eletivos. De acordo com Matos, Cypriano e Brito (2007), as ações afirmativas são um tipo de política focalizada, temporária e que visa corrigir desigualdades de gênero, raça, classe social; e as cotas legislativas atuam na esfera política na tentativa de facilitar o acesso de grupos excluídos às instâncias de poder.

Tanto no Brasil quanto na Argentina houve um acréscimo ao se implantar a política de cotas. 

 Na Argentina, após ser sancionada a lei de Cotas Femininas para cargos legislativos nacionais um aumento de 26% no número de parlamentares escolhidos que eram mulheres.  No Brasil, apesar da política de cotas estar presente há alguns anos, o aumento tem sido vagaroso. Com o fim das coligações para as proporcionais no pleito de 2020, tivemos no país um aumento das candidaturas femininas, visto que, nesse ano, cada partido teria que apresentar ao menos 30% de candidaturas femininas em sua nominata. Isso levou a um registro recorde de candidaturas femininas em 2020. Mas isso não significa um aumento real nas mulheres eleitas. 

Ainda há um longo caminho a ser percorrido em busca de um efetivo aumento de mulheres eleitas em todos os cargos eletivos. Mas, a política de cotas é o início desse caminho.

Fica a pergunta: como Argentina e Brasil e, pensando mais amplamente, a América Latina irá se comportar daqui para frente? Precisamos acompanhar como serão os resultados dos próximos pleitos e o que pode e será feito para que a real ocupação dos cargos eletivos por mulheres aconteça.

ARCHENTI, Nélida e TULA, Ma. Inés. Cuotas de Género y tipo de lista em América Latina. Revista Opinião Pública, Campinas, vol.13, n.1, jul.2009.

BAQUERO, Marcello. Cultura política participativa e desconsolidação democrática: reflexões sobre o Brasil contemporâneo. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 15, n. 4, p. 98-104, 2001.

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BICCA, Renato Dutra. Socialização juvenil, cultura e sub-representação política feminina no brasil. Porto Alegre: UFRGS, 2017.

MARQUES, Danusa. O que são as cotas para mulheres na política e qual é sua importância? Gênero e Número, 2018. Disponível em <http://www.generonumero.media/o-que-sao-as-cotas-para-mulheres-na-politica-e-qual-e-sua-importancia/> Acesso em 29/01/2021. 

MATOS, Marlise; CYPRIANO, Breno e BRITO, Marina. Cotas de Gênero para o reconhecimento das Mulheres na Política: Um estudo comparado ações afirmativas no Brasil, Argentina e Peru. XIII Congresso Brasileiro de Sociologia, UFPE, Recife (PE), 2007.

MATOS, Marlise. A sub-representação política das mulheres na chave de sua subteorização na ciência política. Mulheres, Poder e Política: a experiência do Brasil e do Canadá. 2011.

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Pesquisa “Eleitas: Mulheres na Política”. Instituto Update, 2020.

PINTO, Céli Regina J. Paradoxos da participação política da mulher no Brasil. Paper, REVISTA USP, São Paulo, n.49, p. 98-112, março/maio 2001.

PRÁ, Jussara Reis. Mulheres, direitos políticos, gênero e feminismo. Cadernos Pagu (43), julho-dezembro de 2014.

PRIOLI, Gabriela. Política é para todos. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.

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1 comentário em “A política de cotas nas eleições e a cultura política das eleitoras”

  1. Maria de Fátima Souza de Freitas Santos

    Parabéns a Milene pela ótima matéria apresentada e por demonstrar de forma clara e fundamentada como ainda precisamos crescer politicamente e ajudar nessa luta de coçar mais Mulheres nos Cargos Eletivos.
    Gostaria de parabenizar a QTR pelo alto nível dos colunistas e pela riqueza dos conteúdos. Adorando!

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