Qualificação no atendimento à Educação Infantil – uma questão de tempo ou investimento?

homem branco, careca, com barba e sorrindo.

Leonardo Sampaio

Matemático, Mestre em Educação pela UERJ e Doutor em Educação pela UNIRIO. Servidor Público na SMERJ e Líder Carioca pela Fundação João Goulart – FJG. Ex-diretor escolar na mesma rede, também já atuei como Assistente na Coordenadoria de Inovação Tecnológica da SMERJ, sobretudo no desenvolvimento de produtos e na melhoria da experiência de usuários e coleta de dados. Atuo hoje como Coordenador de Ordenação da Rede – organização de todas as matrículas e dinâmicas de atendimento ao aluno, no que tange ao acesso à Escolarização na municipalidade do Rio de Janeiro. Falo, pesquiso e compartilho cotidianamente sobre Tecnologia, Data Science, Avaliação, Currículo, Formação de Professores, Cultura Pop, Futebol (Flamengo) e nerdices em geral.

Qualificação no atendimento à Educação Infantil – uma questão de tempo ou investimento?

O imaginário musical popular brasileiro tem numa das suas grandes canções algo que considero (pessoalmente) um mantra para quem pensa, formula e executa políticas públicas: QUE PAÍS É ESTE? Imortalizada na voz de Renato Russo no álbum de mesmo nome e lançado em 1987 – 10 anos após ter sido composta. Esse atraso certa vez fora respondido numa entrevista com a seguinte justificativa:

“’Que país é este’ nunca foi gravada porque sempre havia a esperança de que algo iria realmente mudar no país, tornando-se a música então totalmente obsoleta. Isto não aconteceu e ainda é possível se fazer a mesma pergunta do título.”

Por sorte é possível dizer que, ao menos positivamente, muitíssima coisa mudou no país, no entanto, o motivo pelo qual aponto esse verso, em específico, como uma espécie de farol para formuladores de políticas públicas se dá pelo fato de que é preciso enxergar a quem estão endereçadas todas as proposições de uma política pública: mas e quando estamos falando de Educação Infantil? Pode parecer que estamos falando, obviamente, das crianças ora bolas! Mas tudo aquilo que hoje envolve qualificar o atendimento à esta população, também se relaciona de forma transversal com suas famílias, com a força de trabalho e com o percurso educacional que transforma gerações pelo poder da Educação.

Este verso surge como ponto de partida, pois é mais que necessário identificar não somente os problemas, mas a quem estamos nos dirigindo na proposição de soluções. Qual a amálgama que conecta estes cidadãos num país tão diverso? Quais suas necessidades e potências? O quanto falta para conectá-los ao que é direito assegurado pelo Estado Democrático de Direitos? O uso de dados e o recorte histórico preciso dentro de uma determinada perspectiva são fatores cruciais para apresentarmos caminhos possíveis, neste caso, da expansão qualificada dos atendimentos à população da Educação Infantil.

O objetivo aqui é refletir se de fato existe uma contraposição entre o que por hora parece um desafio civilizatório global (e agora brasileiro) de encarar a erosão demográfica que se iniciou recentemente, com a qualidade dos investimentos feitos na etapa de Educação Infantil. É natural acreditar que se existe a chance de termos menos crianças e, consequentemente, mais idosos, que desloquemos os investimentos para a faixa mais elevada da pirâmide etária. Mas afinal de contas: isso faz sentido? O quanto deste panorama já é realidade ou está em vias de tornar-se?

Dados do último Censo Escolar de 2023 recém-publicados tornam claro o panorama pós pandemia para o cenário da Educação Infantil, onde o número de matrículas subiu consideravelmente, especialmente quando comparamos ao período anterior.

Dada a crise fiscal e, consequentemente, a social da última década com o acréscimo da pandemia de COVID-19, é notório que os investimentos nesta seara necessitam acompanhar a demanda que se seguiu: mas qual o tamanho deste desafio?

Segundo dados do Censo Brasil 2022, a nossa população infantil é basicamente a mesma da década de 70, no entanto, a nossa oferta de matrículas hoje é substancialmente maior em todas as dimensões. 

Como ponto positivo é possível destacar que de uma população de 5,4 milhões de crianças em idade de Pré-Escola, 5,3 milhões estão matriculadas efetivamente de acordo com dados do Censo Escolar 2023, dessa forma, é possível concluir que o Brasil caminha a passos largos para o atendimento líquido nesta oferta.

Outra consideração valiosa é a participação dos municípios nesse enquadramento, já que em números absolutos, comparados ao quadro anterior, a participação deles, somente em 2023, chega a 72,5% de todas as matrículas da Educação Infantil no Brasil.

Um dos grandes desafios, hoje, é a expansão do atendimento em Creches.

Segundo a Fundação Maria Cecília Souto Vidigal (entidade cujos estudos se desdobram sobre o atendimento à Primeira Infância e seus impactos) ainda existem muitas lacunas neste atendimento. Segundo os cruzamentos entre o Censo Escolar 2023 e os levantamentos feitos pela Fundação, podemos destacar os seguintes pontos:

  • 42,4% das crianças de 0 a 3 anos ainda necessitam de Creche em todo o Brasil;
  • embora a cobertura tenha crescido bastante de 2022 para 2023 – saltou de 3,6 milhões de atendimentos para 4,1 milhões nesta etapa – ainda estamos longe dos 50% que preveem o PNE;
  • foi a etapa que mais sofreu na pandemia com as contrações de oferta, liderando as taxas de queda de atendimentos/oferta de vagas;

Uma abordagem intrigante da questão é a oferta em função das quedas nas taxas de natalidade, e aqui trago à luz o exemplo da cidade do Rio de Janeiro.

Nesta municipalidade, as taxas encontram-se em queda livre há mais de 1 década, segundo levantamento junto ao SINASC (Sistema de Informação sobre Nascidos Vivos do SUS), a perspectiva se repete com cada vez mais raras exceções no âmbito nacional.

Nesse ponto, o verso da música que abre esse texto se faz necessário para aqueles que dialogam com a Educação Infantil em todo o país: que Brasil é este cuja infância demanda ainda tantos cuidados e investimentos, mas que vem encolhendo dia após dia em números de nascimentos?

Essa tendência é desdobrada em vários painéis críticos do Censo Brasil 2022, por alguns motivos já mencionados nesse mesmo artigo: pandemia de COVID-19, retração econômica, mudanças nos padrões de habitação e qualidade de vida, etc. São vários os fatores que têm levado às famílias pela opção de não ter filhos ou de retardar esse momento para uma fase mais abastada da vida. Tal fenômeno não pode ou deve representar uma retração, em conjunto, nos investimentos que essa etapa educacional merece receber.

De maneira justaposta, precisamos elaborar mecanismos que qualifiquem e expandam a oferta de maneira que não fiquemos satisfeitos somente com os 50% previstos no PNE (e que já são extremamente expressivos dado o passado recente), mas que façam jus ao artigo 227 da Constituição Federal de 1988, que foca nas crianças como elementos centrais na elaboração de políticas públicas.

A provocação aqui é a de elaborarmos quais mecanismos tornam possível remodelar o status quo a respeito da ideia de que um extrato menor da população deva merecer menos investimentos, ou seja, tornar-se menos visível em relação à formulação e expansão de políticas públicas. O que no caso das populações da Educação Infantil não pode ser negociado e nem visto como alternativa – no Amazonas, no Araguaia ou na Baixada Fluminense o âmbito é tornar o atendimento universal e abrangentemente qualificado.

Autoconhecimento é um caminho... constante!

Depois de um panorama geral a respeito do quanto já avançamos, e do quanto precisamos ainda crescer para que o atendimento na Educação Infantil seja uma das molas mestras da transformação social que sonhamos enquanto nação, é importante trazer ao debate algumas ideias sobre as ferramentas que podemos nos auxiliar nesse avanço.

Conhecer nossa arquitetura neste oferecimento, suas lacunas e potencialidades é fundamental para entender o que está a nossa disposição para que alcancemos o desejado. Enquanto o retrato geral destaca uma sociedade em mudança demográfica mais acelerada do que o esperado na queda de nascidos vivos e no aumento da expectativa de vida – fatores que apontam custos diametralmente opostos ao Estado – a necessidade de melhor atender aos pequenos é, ainda, latente no Brasil.

Iniciativas como a da ONG Base dos Dados, as fontes de Dados do IBGE, INEP e demais entidades do setor público e privado são extremamente importantes para que o “cadastro biométrico” que as populações apresentam, sejam devidamente utilizados para melhor formular políticas que as atendam.

Neste sentido, é profundamente importante retornar ao caso do Rio de Janeiro, ainda o único estado da Federação que não implementou o ICMS Educação. A ONG Todos Pela Educação apresenta um farto relatório que aponta esta fonte de recursos como um ponto de virada na relação entre a oferta e a qualidade do atendimento educacional, disponível clicando aqui: Estudo_ICMS Educação nos estados_Todos Pela Educação.docx (todospelaeducacao.org.br).

Este é, nos conceitos sempre sábios do patrono da Educação brasileira Paulo Freire, um verdadeiro “Inédito Viável”, recurso que pode ser explorado em novas frentes e que trago como provocação neste sentido. Na grande maioria dos estados, o eixo de proposição de uso do ICMS-Educação se destina à melhorias de aprendizagem localizadas no Ensino Fundamental I, II e Nível Médio, o que a luz dessa reflexão à respeito da Educação Infantil talvez possa parecer um equívoco em partes, e explico o porquê.

Em suma, qualificar a Educação Infantil é uma forma de induzir um “duplo check” no que se ambiciona quando falamos de Educação no sentido mais amplo possível: transformação social vinculada à aprendizagem.

Neste caso, em específico, significa permitir que com a ampla oferta de vagas em creche, com a etapa de pré-escola em tempo integral e qualificada (pontos onde o Estado do Rio de Janeiro que NÃO deliberou sobre o ICMS-Educação, por exemplo, avança continuamente no âmbito da municipalidade nestas ofertas) podem atingir patamares ainda mais prolíficos e transformadores. Tais oferecimentos são capazes de permitir que outras áreas de desenvolvimento social como trabalho e habitação, por exemplo, sejam profundamente transformadas, uma vez que melhores condições de qualificação para as famílias se mostram possíveis a partir do momento em que as crianças são acolhidas na Educação Integral e estes familiares podem, assim, melhor colocar-se no mercado de trabalho, além de poderem desfrutar de melhores oportunidades de colocação educacional.

A janela que se abre aos cariocas hoje, apesar de representar uma séria lacuna temporal no aproveitamento que a política do ICMS-Edu pode representar para a Educação Infantil, por exemplo, também pode ser trabalhada como Inédito Viável no sentido de que hoje, é possível olhar para 26 experiências distintas de emprego desses recursos na construção de políticas públicas em Educação.

A expansão dos atendimentos qualificados nessa etapa de ensino tem, nas mudanças demográficas, a oportunidade de olhar com mais afeto o emprego de recursos para essas populações, sobretudo nas periferias urbanas – onde hoje vivem a maior parte dos contribuintes das classes C, D e E em todo o Brasil segundo o Censo Brasil IBGE 2022. 

É preciso olhar com otimismo a ideia de que, mesmo que um desafio se apresente do ponto de vista demográfico com as quedas nas taxas de natalidade acompanhadas de maior expectativa de vida, no geral, a oportunidade de alocar mais recursos na relação per capita de alunos em todos o país – sobretudo na Educação Infantil – figura com o alicerce de um Brasil cujos indicadores de aprendizagem se elevarão à patamares de excelência não apenas por uma questão de maior alocação de recursos diretamente, mas pela solidez que o compromisso público com a causa educacional transmite aqueles que a constituem dia após dia nos espaços de representatividade.

Não há nada melhor do que observar quem éramos ontem, ou para quem éramos todos em conjunto, na busca de uma espécie de “eu-coletivo” mais consciente do todo.

A experiência que o tempo vêm nos entregando caminha para consolidar a observação de que, atender à Educação Infantil com parâmetros de qualidade assentados no mais amplo espectro e com as melhores definições de progresso não só será uma questão de tempo, mas de cuidado com o porvir dos pequenos onde quer que estejam assentados a nível nacional.

Finalmente, deixo aqui a provocação do quanto precisamos nos envolver, no sentido mais profuso que este termo possa ter, por exemplo, quando observamos a experiência do Ceará ou, mesmo do Rio de Janeiro diante da ausência do ICMS-Edu.

Os grandes e significativos avanços nos indicadores educacionais, transitam por uma amálgama de afetos que une parlamentares, professores, profissionais diversos da educação e membros da sociedade civil com quem mais importa: a criança, na melhor concepção de futuro que esta representa.

Que sejamos capazes de nos envolver na construção das melhores políticas não apenas pela ideia de que elas nos catapultam ou nos tornam visíveis a nível pessoal/profissional, mas por que representam a melhor forma de imprimir uma marca de compromisso público com a esperança e o sonho de uma educação focada em antepor o melhor para os nossos pequenos desde muito cedo.

Abro este artigo com um título que questiona se tal compromisso estará assentado somente na alocação de volumes maiores de recursos ou na passagem do tempo, que traz muitas mudanças como foi possível observar em alguns aspectos – inclusive na própria gestão destes recursos – no entanto, encerro o mesmo com uma nova provocação: é possível qualificar o acesso à Educação Infantil, à nível nacional, sem nos utilizarmos do tempo como aliado? Talvez não haja recurso melhor do que este, afinal de contas o mesmo poeta que nos convida a refletir sobre que país somos, nos deixou com uma sentença ao invés de afirmação direta que muito mais parece um questionamento: temos todo tempo do mundo?

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