Entrevista com Juca Kfouri - Jornalismo, Futebol e Democracia
Histórias e críticas do grande jornalista esportivo sobre a política e a sociedade no nosso país.
Nesta entrevista exclusiva, exploramos a trajetória e as perspectivas de José Carlos Amaral Kfouri – mais conhecido como Juca Kfouri – Corinthiano, paulistano e uma das maiores referências do jornalismo esportivo e da crônica futebolística do país.
Ao longo da conversa, Juca compartilha sua visão sobre a democracia brasileira e sobre o papel do futebol, ontem, hoje, e no futuro, na mobilização e união da sociedade brasileira.
História de vida, ditadura, exclusão, representatividade, times do coração, seleção brasileira, condenações recentes de jogadores e muito mais, você confere na íntegra no episódio do QTRCast.
A seguir, destacamos alguns momentos que dão o tom da participação de Juca Kfouri no QTRcast:
Ygor Lioi: Juca você estava falando sobre um lado da sua vida que normalmente não é muito abordado pelo fato é um jornalista esportivo. Digo que acompanho suas colunas do UOL sempre porque você sempre fala bem do meu Botafogo.
Juca Kfouri: Eu era botafoguense quando criança Igor porque alvinegro aqui em São Paulo o único alvinegro que me dava satisfação era o Botafogo de Mané, Didi, Quarentinha, Zagallo, Amarildo, Nilton Santos, Manguinha. (…) Depois, quando o Rivelino – estamos falando já de 1974, eu já tinha 24 anos – sai do Corinthians para o Fluminense, eu viro tricolor. Mas eu era botafoguense, acompanhei muito o Botafogo. O grande Botafogo eu vi de perto.
Democracia Corinthiana
Ygor Lioi: A gente sabe que o futebol ele é uma ele acaba sendo uma consequência do que a sociedade. Enfim nós temos uma sociedade em que o tecido social ele cada vez se esgarça mais. Eu queria que você dissesse o seguinte. Na sua opinião, o Brasil precisaria de uma democracia corintiana hoje?
Juca Kfouri: Então, Ygor, eu acho que o Brasil sempre vai precisar aprofundar a sua democracia. Já dizia o Churchill que “a democracia é o pior dos regimes, mas ainda não inventaram outro melhor”.
A gente sabe de todos os males da nossa democracia, agravados, agravados, por dois períodos enormes de ditaduras em pleno século XX.
Eu sempre digo isso, Ygor, que o pior das ditaduras não é nem o período em que elas estão instaladas no país. É o depois, porque durante as ditaduras se formam gerações sem noção dos seus direitos e dos seus deveres. Ditaduras não formam cidadãos. E é tudo o que nós precisamos. Fossemos um país de maior reivindicação de cidadania, não seríamos um país com as carências educacionais, com as carências de saúde pública, com as carências de moradia, de saneamento básico, de segurança pública que nós temos.
Então, quando a gente tem num clube de futebol, e aí eu tive, e aqui ó, a democracia corintiana tá aqui nas costas – eu tive a felicidade, porque podia ter sido a democracia palmeirense, ou a democracia são paulina, ou a santista, ou a rubro negra. Não, foi a corinthiana! Poder acompanhar aquilo de perto, cobrir aquilo e apoiar aquilo e ver o quanto aquilo fez com que o Corinthians crescesse e se tornasse de fato um clube nacional, até então não era. (…) A democracia corinthiana lançou o Corinthians para o país. A democracia corinthiana foi tema de novela da Globo. Né? É claro que eu penso: tivéssemos no país, desde sempre, aquele exercício democrático, certamente teríamos um país melhor, certamente.
E não teríamos um país cuja democracia é tão manietada e tão desviada pelo poder econômico, pela demagogia, pela confusão entre religião e política, pela ignorância, pela exploração da fé alheia, tudo isso que são as nossas mazelas, com as quais nós convivemos, e convivemos de maneira brutal entre 2018 e 2022.
Democracia vs Ditadura
Juca Kfouri: Eu sou perfeitamente capaz de compreender, por exemplo, embora eu tenha votado no Lula, que alguém odeia o Lula. Eu entendo quem ache o Lula isso e aquilo, ache que o Lula não é o cara pro país, que o Lula não tá preparado pra dirigir o país, que o Lula tem ideias estranhas, que o Lula não é suficientemente democrata, porque se fosse não passaria pano pra figuras como Maduro, como o Ortega na Nicarágua. Entendo. (…) O que eu não consigo entender, Ygor, é que alguém, em nome de Deus, em nome de Jesus, vote e apoie e continue a apoiar alguém que fez o elogio de um torturador. porque isso a minha geração não pode perdoar.
Eu sei o que é passar, e foi só uma noite, no DOI-CODI. Eu sei, com a minha mulher, ameaçados de tortura durante a meia-noite e meia do dia 7 de setembro de 1971 até as 19 horas do dia seguinte. Eu sei. DOI-CODI, Operação Bandeirantes, aqui em São Paulo, que era chefiada pelo senhor Brilhante Ustra, que o deputado Jair Bolsonaro homenageou ao votar pela cassação de Dilma Rousseff. Isto, pra mim, é definitivo.
Então, pra mim, isso é absolutamente inaceitável. Não passa. Rompi amizades de anos por causa disso. Porque eu dizia, você não pode ser meu amigo sendo a favor de um cara que tem como ídolo quem queria me torturar.
Quer discutir politicamente, ideológico? Vamos discutir a exaustão. Toco. Qualquer discussão. Qualquer discussão. Reconheço todas as minhas ilusões. de achar que íamos fazer uma revolução, íamos estabelecer aqui o paraíso do proletariado, eram ilusões de um jovem idealista. Achar que pela luta armada, que o Brasil fosse Cuba, que a gente ia derrubar a ditadura brasileira, como Fidel Castro derrubou Fulgêncio Batista. – Juca Kfouri
Juca Kfouri: Erramos. Perdemos mais de 400 vidas de gente muito valorosa nessa utopia por indignação, por sensibilidade, porque, lembremos, havia um processo democrático no Brasil que foi interrompido mano militar. em 64. Íamos ter eleições em 65, provavelmente para eleger de novo Juscelino Kubitschek, que vamos combinar, de comunista não tinha nada. Se não fosse ele, era o Carlos Lacerda, que menos comunista ainda tinha sido e tinha virado um homem de direita. Brilhante, brilhante, tribuno dos maiores da história do Brasil, mas um homem de direita.
Ygor Lioi: Ao final, mestre, os três juntos, né? Juscelino, Lacerda e João Goulart.
Juca Kfouri: Exatamente. E acabaram todos morrendo de maneira misteriosa, né? Ou de maneira acidental, digamos assim. Mas então, enfim, é isso.
Juca Kfouri: Quer dizer, para terminar minha apresentação, para ficar muito claro quem que eu sou, eu sou assim. Quando eu tinha 17, 18, 19, 20 anos de idade, 21, e, digamos, estava num grupo subversivo, eu morria de medo de ser preso, como acabei sendo, mas tinha muito medo. Todo dia, na hora do banho, deixando cair água na minha nuca, eu me auto-interrogava. Se eu for preso agora, que história eu conto para o interrogador? Porque eu tinha a absoluta consciência de que, embora eu estivesse fazendo uma coisa que, na minha visão, fosse legítima, não era legal. Havia um estatuto estabelecido pela ditadura, e aquilo que eu estava fazendo era ilegal.
Muito bem, depois de 2018, com 70 anos de idade, eu passei a achar que, conforme as coisas evoluíssem, eu poderia voltar a ser preso. E aí eu não tinha medo nenhum. Medo nenhum. Porque não só eu não estava fazendo nada de ilegal, como tudo que eu estava fazendo era absolutamente legítimo, de denunciar aquela figura que estava no poder. – Juca Kfouri
O que divide o mundo do futebol hoje?
Vivi: O Brasil se dividiu a partir do governo Bolsonaro. Famílias, torcidas… Você acha que isso impactou de alguma forma o futebol?
Juca Kfouri: Então, Vivi, veja, eu acho que o que me preocupa no ambiente do futebol, porque eu sou de um tempo que os estádios sequer dividiam a torcida, as torcidas se misturavam, E raramente saía uma briga e quando saía a briga era um tapa pra cá, um tapa pra lá e tal. Logo alguém apartava e o jogo continuava e as pessoas continuavam a torcer. Depois começou a haver divisão de torcida porque começou a ficar impraticável essa reunião. E hoje você tem em alguns estados como São Paulo o fenômeno da torcida única. Clássico não tem mais duas torcidas o que é de certa maneira um futebol agonizante. Porque você não ter as duas torcidas no estádio é um negócio de maluco, se você pensar. Que é típico de quem não é capaz de resolver o problema. Então resolve o problema com a proibição. (…) Em vez de você pegar a minoria, que sabidamente é uma minoria violenta, e tirá-la do estádio, você proíbe que todos que não são violentos possam ir ao estádio. Não sei em que medida isso aumentou com o nível de intolerância política. Não sei. É difícil medir isso. Se eu vou ao jogo do Corinthians em Itaquera e torço e me abraço na hora do gol do Corinthians com um bolsonarista. É possível que isso aconteça. É possível que isso aconteça.
É um pouco isso que vocês vivem no Rio de Janeiro e que a gente não vive em São Paulo. A praia, que é lugar mais democrático do que a praia, todos de maiô, todos de calção, todos de biquíni, O milionário e o pobre. Embora cada vez mais a gente veja tentativas de afastar os excluídos da praia. E Chico Buarque de Holanda… tem uma música magnífica retratando isso.
Curiosidade: a coluna do Anderson Quack, nesta semana, foi inspirada na música Caravanas, do Chico Buarque, Então também fica um convite acessar.
Juca Kfouri: Então, veja as nossas contradições e os nossos paradoxos pensando em políticas públicas. Eis que, num governo popular, o Brasil organiza uma Copa do Mundo. A famigerada FIFA, sobre a qual eu tenho todas as críticas que você queira imaginar e mais algumas, pede que se faça em oito estádios. O Brasil, num acesso de megalomania, organiza em 12 estádios. Constrói pelo menos cinco elefantes brancos. (…)
Juca Kfouri: E qual foi o legado da Copa do Mundo, além dos elefantes brancos? A exclusão dos excluídos dos estádios. Os nossos estádios são cada vez mais brancos, porque os excluídos não têm dinheiro para frequentá-los. Então, o esporte mais popular do Brasil e do mundo excluiu aqueles que não podem pagar o ingresso.
Então veja a importância que tem o futebol e o olhar para o futebol não como meramente uma coisa que acontece dentro das quatro linhas. Tem uma frase de um escocês que eu gosto muito, Bill Shankly, que foi treinador e depois gerente dos Anos de Ouro do Liverpool. E ele dizia o seguinte: é claro que o futebol não é uma questão de vida ou de morte. E fazia uma pausa. É muito mais importante do que isso. Pegando a essência desta frase, é muito claro o que ele quer dizer. O quanto o futebol é uma face da nossa sociedade. Futebol e a vida são faces da mesma moeda. Não há dúvida nenhuma, para mim é muito claro isso.
Aqui deixamos apenas alguns trechos desse bate-papo incrível sobre Futebol, Democracia e mais. Vale a pena ouvir a entrevista completa com Juca Kfouri. Confira!
Quer ouvir a entrevista na íntegra? Disponível no Spotify.
Eu compreendo quem ache o Lula isso e aquilo. Eu não acho!