Entrevista com Daniel Soranz: Políticas Públicas de Saúde
Desafios e soluções para a saúde e a população em situação de rua no Rio de Janeiro
Em uma entrevista exclusiva, Daniel Soranz, médico de saúde pública, e agora deputado federal e Secretário Municipal de Saúde, compartilhou insights valiosos sobre os programas e políticas que moldaram sua carreira e continuam a transformar o cenário da saúde no Rio de Janeiro.
No decorrer do episódio, discutimos diversos aspectos relacionados à saúde pública e aos programas de assistência voltados para a população em situação de rua.
Com uma vasta experiência na área, Soranz compartilhou suas perspectivas e soluções para os desafios enfrentados pelo sistema de saúde e pelas comunidades mais vulneráveis.
O convidado nos contou sobre seu orgulho de ser médico e ter começado sua carreira na Fiocruz:
Eu comecei minha carreira em Manguinhos, na Fiocruz, como médico de família, que eu amo. A minha equipe era a equipe do Parque Oswaldo Cruz. Depois, eu fiz meu mestrado em políticas, meu doutorado em epidemiologia; fui subsecretário de saúde do município do Rio, depois fui secretário no período das Olimpíadas e pré-olimpíadas; depois fui morar em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, (e tive que) praticamente, montar um programa de residência lá. E aí, no meio da pandemia, naquela loucura toda, eu volto a ser Secretário de Saúde, e aí entrei para o Renova, do Renova virei deputado federal, e hoje eu sou Deputado Federal, e Secretário de Saúde e funcionário cedido da Fiocruz para a Câmara dos Deputados.
Por que não escalamos boas políticas públicas?
Ele ressalta a importância do Programa de Saúde da Família como uma pedra angular para qualquer sistema de saúde, afirmando: “O Saúde da Família só não trata como prioridade quem não conhece nada de sistema de saúde”.
Ele destaca o esforço para ampliar a cobertura desse programa, que resultou na criação das Clínicas da Família, uma iniciativa que elevou significativamente a oferta de atenção primária na cidade.
O que é a clínica da família? Ela é a estrutura física para receber uma equipe de saúde da família.
Muitas vezes, ele gestou o contrato, uma equipe de saúde da família, mas põe lá num postinho(…), num local sem estrutura, num consultório sem prontuário eletrônico, em um local que não tem um ultrassom. Então, as clínicas da família são locais onde você consegue resolver 82% dos seus problemas de saúde. Ela foi desenhada para isso. Pegou os principais problemas de saúde da população e viu que precisa ter isso, precisa ter isso, precisa treinar isso. Criou-se não só um programa onde a gente vê a estrutura física, que é a clínica da família (…).
Então, o que eu preciso fazer para aquele profissional saber resolver 82% dos problemas daquela pessoa? A residência ajuda? A gente criou um programa de residência para médicos de família, para enfermeiros de família, multiprofissional. Eu preciso que o agente comunitário saiba fazer uma boa visita domiciliar, um bom acompanhamento? A gente criou um programa de curso técnico para agente comunitário.
Então, a gente viu a estrutura física, viu a questão da formação, do conhecimento, também a questão dos insumos e tudo isso está descrito na carteira de saúde. na Carteira de Saúde de Atenção Primária, a gente viu lá igual um caráter de restaurante, sabe quando você vai no restaurante e o cara pedir 80% das comidas mais pedidas no mundo? Então, é isso, a gente criou uma caderneta que é a Carteira de Saúde, que eu não tenho nenhuma aqui para te mostrar, mas tá ali, eu ia ter que levantar.
Políticas de vacinação e sua eficácia
A eficácia das políticas de vacinação também é enfatizada pelo Secretário, que destaca a importância de seguir as evidências científicas: “Na saúde pública, nada é mais eficiente do que vacinar”. Ele aponta para exemplos notáveis, como a erradicação da poliomielite, destacando a vacinação como uma estratégia fundamental na promoção da saúde pública.
Daniel Soranz: a vacina não é pra ser polêmico, né? Se é polêmico a vacina, é uma loucura, né? Nem é polêmico, 99% dos cariocas aqui do Rio tomaram as duas doses da vacina, da Covid. Aqui não é uma polêmica. Claro que tem uma minoria da população, que é muito pequena, que gera polêmica com a vacina. Mas é… A vacina é… que é um investimento incrível, né? Cê imagina, cê dá uma picadinha numa vacina de febre amarela pra pessoa uma vez na vida dela, depois ela está imunizada pra vida toda. Só que se ela tiver febre amarela, vai ser um perrengue, entendeu?
Daniel Soranz: Imagina, a gente erradicou a poliomielite, que é a doença mais terrível, né? Então, a vacina é algo óbvio, e talvez na saúde pública nada seja tão mais eficiente do que vacinar. Por isso que a gente vacina tanto em tanta escala. É muito eficiente, o resultado aparece muito rápido. Por exemplo, o HPV. O HPV, na Dinamarca, zerou os casos de câncer de colo de útero. Zerou. Zero, zero. Não tem mais. Zerou. Vários países da Europa zeraram que investiram numa vacina que é a Nonalente, que é uma vacina melhor do que a que a gente tem aqui. Pega mais subtipo do vírus. Então, é uma vacina muito eficiente, então não tem nem que discutir.
No que diz respeito à formulação de políticas públicas, Soranz destaca a necessidade de basear as decisões em dados e evidências científicas. Ele enfatiza: “Um bom político é aquele que utiliza as evidências científicas do que vai dar resultado”, destacando a importância de investir na atenção primária como uma estratégia eficaz para melhorar os resultados em saúde.
Quando você utiliza as evidências científicas para tomar decisão, quando você utiliza dados, experiências anteriores, de outros locais do mundo, que foram avaliadas, a chance de você acertar é muito maior. Então, na saúde, se deixar, você incorpora tecnologia de tudo quanto é tipo. E, às vezes, essa tecnologia que você está incorporando, que é caríssima, não traz benefício nenhum, nem para você, nem para os pacientes. Então, só vai gerar custo. Então, isso é o que a gente tem que estar sempre olhando.
Se eu puder dar um conselho de onde você coloca melhor o seu dinheiro na saúde, é na atenção primária. Investir nas pessoas da atenção primária. Isso dá um resultado final grande, alto. Porque isso gera economia para o futuro, mas gera muita qualidade de vida e aumenta a expectativa de vida da sua população. Aumenta a satisfação. Então, se você quiser gastar bem, gasta na atenção primária de saúde. E depois você vai vendo aí os níveis de atenção.
Claro que se você estiver num governo de estado, você vai gastar com oncologia, vai gastar com alta complexidade. Se você estiver no Ministério da Saúde, você vai precisar investir junto com o MEC nos hospitais universitários, numa complexidade maior. Mas no município, você precisa fazer uma atenção primária de muita qualidade.
Daniel Soranz: O Brasil gasta 70% do seu orçamento com hospital, tratamento, clínica, exame. A Inglaterra gasta 82% do seu orçamento com saúde da família. Qual sistema de saúde você acha que é melhor? Os ingleses ou o nosso? Claro que é o inglês, entendeu? Até porque ele já tem muito mais tempo e vivência, experiência da gente no sistema de saúde, que é desde 1920. O nosso é de 88. Mas é importante, gente, na hora de tomar decisão, se você de fato está preocupado com eficiência, porque eficiência não é você gastar pouco. eficiência é você gastar bem no mundo real, entendeu? No mundo real, na vida real, com as características da sua população, as características do seu local, é conseguir que esse custo dê resultado. Então, é isso, é gastar bem o seu recurso.
O programa "Seguir em Frente"
Daniel Soranz: A gente está aqui tirando as pessoas da rua. O objetivo do Projeto Seguir em Frente é que aquela pessoa que está em situação de rua possa sair daquela situação. Então, o nosso indicador, a nossa meta não é fomentar a pessoa na rua. É conseguir tirá-la de lá. (…) O morador de rua vive aqui no Rio, em média, 41 anos. Sabe qual é a expectativa de vida do carioca, em geral? 70 ou 72? A pessoa que está em situação de rua, a chance dela morrer é muito maior do que qualquer outra. Isso, no final da linha, acaba acontecendo.
Daniel Soranz: Então, a gente montou um super programa que é o Seguir em Frente, que o Álvaro falou com vocês, não falou? Bom, ele é um programa de fases. Só que você pode entrar para todas as fases ao mesmo tempo, menos para a última. Então, você tem uma primeira fase, que é tirar a pessoa da situação de rua. A gente montou um espaço com banheiro, com máquina de lavar roupa, com um monte de coisa. O cara falou, sai daqui da rua e vem para cá. Você tá aqui, você tá protegido. Aí, a segunda fase, ainda dentro dessa parte de tirar a pessoa da rua: tem abrigos pra receber as pessoas.
Daniel Soranz: E os abrigos precisam ser bem estruturados. Precisa ter conforto e precisa ter capacidade de entender a pessoa enquanto indivíduo. Então, se a pessoa tem cachorro, tem que poder ir pro cachorro. Se a pessoa é homossexual, ela tem que ir para onde ela quiser. Eu não posso ter um abrigo só para LGBT+, não posso. A pessoa pode decidir ir para um abrigo comum. O prefeito fez um decreto aqui, permitindo todas as diferenças, sem nenhum tipo de discriminação. A pessoa não tem documento, não tem problema, porque o indivíduo e o respeito à identidade é maior do que ter um papelzinho, entendeu? (…) Então, a primeira coisa é respeitar a individualidade de cada um. Não existe pessoa igual à outra e não existe pessoa em situação de rua igual a outra. Os motivos que levam a pessoa para a situação de rua geralmente são catastróficos, mas são diferentes.
Histórias reais do "Seguir em Frente"
Então, se eu pegar a história de uma pessoa que virou um pouco um símbolo do nosso programa, falou: “Secretário, olha, eu nunca usei droga, mas um dia eu encontrei, eu estava dirigindo com a minha esposa e com a mãe da minha esposa no carro, e eu bati o carro, as duas morreram, e eu entrei numa depressão profunda e perdi a minha casa, eu morava em Vila Isabel, tinha uma casa ótima, olha aqui no meu Facebook de 10 anos atrás, tinha uma casa ótima, uma família ótima, mas eu não consegui suportar essa dor. Fui jogado na rua e na rua eu tive que começar a usar porque eu não aguentava suportar aquela realidade. É muito difícil suportar a realidade da rua. Você vê ali barata, rato passando em cima de você. Às vezes, a droga ou o álcool são a única forma de você encarar essa realidade da vida, que é muito dura.”
Daniel Soranz: Tem um paciente que estava ao lado do Carioca no chão, HIV positivo, com tuberculose muito resistente, e ele estava se matando, ele não queria mais viver. Ele usava droga em looping, ele não queria mais viver ali. A gente internou ele involuntariamente, ele foi internado, foi para o hospital da ilha, começou a tratar a tuberculose e o HIV, rapidamente ele melhorou, em menos de 24 horas ele foi transferido lá para Fiocruz, para o INE, e saiu de lá uma outra pessoa, conseguindo se organizar, entender o que estava acontecendo com ele, tudo em muito pouco tempo de internação. A gente não queria tirar ele da rua, colocar ele num manicômio, numa camisa de força, não. A gente queria dar uma oportunidade para ele poder decidir sobre a própria vida dele num momento de mais tranquilidade. Esse é um caso que, para mim, é muito emblemático. A gente teve vários casos iguais a esse.
Porque a gente é, às vezes, criticado sem a pessoa conhecer. Falam, ah, vocês estão querendo internar todo mundo compulsoriamente, é um direito da pessoa ficar na rua se ela quiser e coisa… Só que, muitas vezes, o cara não tem consciência desse direito e não é isso que ele quer. Realmente, ele quer. E se algum dia você me ver na rua completamente louco, transtornado em alguma coisa, por favor, me socorra, me acolha, até eu melhorar e poder entender o que está acontecendo, entendeu? Essa foi uma coisa importantíssima do programa. E ninguém, no Seguindo em Frente, é preso ou obrigado a ficar em lugar nenhum.
Daniel Soranz: No nosso programa, a pessoa pode entrar isso aí a hora que ela quiser dos abrigos. A hora que ela quiser, não tem nem horário. Pode continuar fazendo o que ela quiser. Isso não é uma questão. Depois, a gente tem uma outra fase, que é a fase do trabalho. Então, a pessoa entra para um programa de estágio que ensina, e ensina ela a entrar para o mercado de trabalho e aprender uma profissão, e ela ganha por isso. Então, para cada dia que ela faz parte do programa de estágio e vai desenvolvendo essa profissão, ela ganha o proporcional de R$ 1.500,00 por 22 dias trabalhados. Então, ela entra num programa de emprego, renda, ligado à formação, que não vai durar para sempre, porque dura sete meses, no máximo.
Daniel Soranz: A outra fase, a segunda que eu pulei, desculpa, é o tratamento em saúde. Toda pessoa em situação de rua tem problemas de saúde graves. Às vezes são problemas de saúde mental, mas muitas vezes também são problemas da saúde física daquela pessoa. Então, a gente precisa entrar com cuidado em saúde. A quarta fase, que é a penúltima fase, é a fase de conseguir uma moradia definitiva. A gente trabalha com essa pessoa que está recebendo dinheiro, que está em tratamento de saúde, que saiu da situação de rua, mas que precisa de uma moradia definitiva. Às vezes é muito bom a gente ter a casa primeiro, mas muita gente não tem condição de ter uma casa primeiro, porque ela não tem nenhum banheiro, não consegue nem tomar banho, não tem nem o que levar para casa. Então, no nosso programa, a gente ajuda a organizar as roupas, a gente dá uma mochila para aquela pessoa para poder guardar as coisas dela, a gente dá um kit de higiene, a gente dá uma série de coisas que são essenciais para você ir voltando a poder conviver na sociedade normalmente. Então, os relaxos são incríveis. Quando a pessoa fica… Tem gente que fala, olha, eu fiquei há mais de três anos sem conseguir uma pasta de dente na boca. Isso é incrível falar isso para você. Você fala, pô, isso é essencial. Se a gente ficar um dia sem escovar o dente, a gente vai ficar desesperado, né? Imagina uma pessoa falar isso assim. Então, faz parte do tratamento de saúde, escovar o dente e tudo, mas tirar da situação de rua e dar um kit mínimo de higiene e coisa, é a primeira etapa. Para depois, num curto espaço de tempo, a gente conseguir uma moradia definitiva.
Então, hoje a gente tem 1.200 pessoas que saíram da situação de rua, 800 pessoas já estão no programa de estágio. A gente já tem 46 pessoas que já conseguiram uma moradia definitiva. Quase uma pessoa por dia no programa que já conseguiu uma moradia definitiva. Então, é incrível.
Daniel Soranz: E as pessoas, às vezes, têm muito preconceito. não querem aquele morador de rua perto da sua casa, acham que ele não tem recuperação. Muitas vezes, você fala, isso é uma coisa que não tem solução, é igual enxugar gelo. Quanto mais você cuida, mais aparece. Não é verdade, não é verdade. A população de rua do Rio tem um Censo só, 7.800 pessoas na rua. Eu vou tirar 7.200 com apoio. E aí, é verdade, entendeu? dar apoio para o cara ter renda, vinculado a emprego, apoio de verdade para o cara ter tratamento e saúde, e você cuidar de cada reincidência, se ele tiver problema com álcool e droga, ou se ele tiver uma depressão profunda. Você ter apoio para o cara conseguir um domicílio, que muitas vezes vai ser um domicílio que ele não vai conseguir se fixar ali por muito tempo, você tem que dar todo o suporte para ele se fixar. E o seguir em frente, ele tem um objetivo, que a pessoa saia do programa, uma moradia definitiva, ainda mantendo o tratamento em saúde, mas que ela saia do programa para viver a sua vida como qualquer pessoa que não tenha passado pela situação de rua anteriormente.
E é esse o nosso objetivo, você conseguir um suporte tão grande que a pessoa possa falar, olha, você passou por aqui, mas você vai continuar tratando no serviço de saúde normal, no que todas as pessoas se tratam no hospital, que é igual para todo mundo, vai conseguir emprego com o nosso apoio, mas vai seguir ele, como todas as outras pessoas que estão empregadas naquela empresa, e vai construir ou organizar a sua família do jeito que você quiser e do jeito que você acha que tem que ser a sua vida. Então, é isso. É um programa que a gente tenta o tempo todo, respeitar a individualidade de cada um, mas conseguir que a pessoa possa ter autonomia para fazer as suas coisas. E é um programa que tem muito resultado.(…) tem muito preconceito com moradores em situação de rua. Fala, ah, o cara é vagabundo, não quer trabalhar. Você vai lá no Censo, 70% dos moradores de rua, já trabalham, já trabalham catando lixo, ou catando material reciclável, ou fazendo pequenos trabalhos domésticos, ou pedindo dinheiro. Então, tem uma vendendo produtos (…) As pessoas que estão em situação de rua não querem sair da rua. Isso é um mito, não é? Não quer, a pessoa quer morar na rua. Aí você vai lá e pergunta para a pessoa, você quer ficar na rua? Não, não quer.Só 4% das pessoas que a gente abordou no censo, só 4% dizem que querem ficar na rua. A maioria diz que, para sair da rua, precisa de emprego, depois vem, precisa de uma casa, depois precisa de uma família, depois precisa me casar. O desejo das pessoas são diversas. Então, se casar, é uma boa opção para sair da rua.
Por fim, Soranz destaca o papel crucial do engajamento político da sociedade na construção de uma cidade mais saudável e inclusiva. Ele incentiva o público a se envolver ativamente na formulação de políticas públicas, afirmando: “Se você não está engajado ainda, se engaje, porque com certeza você vai poder ser uma pessoa muito melhor para si e construir uma cidade muito melhor para todos”.
Em suma, a entrevista com Daniel Soranz destaca não apenas os desafios enfrentados pela saúde pública, mas também as soluções inovadoras e abordagens eficazes que estão moldando o futuro da assistência médica no Rio de Janeiro. Sua experiência e visão oferecem inspiração e orientação para líderes e profissionais da área da saúde em todo o país.
Quer ouvir a entrevista na íntegra? Disponível no Spotify.